Treze de maio passado (1972) fez 84 anos que não mais existem escravos nesta Pátria. Mas, para se chegar até lá, gastou-se muita luta, muitos sacrifícios e muitos sofrimentos principalmente dos seres escravizados. O negro trabalhava no eito, de sol a sol, mal nutrido e mal vestido, descalço e sob o chicote do feitor. Se não fosse a resistência extraordinária dos africanos e descendentes, não teriam suportado tamanha desdita. E foram eles que, com seu suor, na expressão exata do termo, que construíram esta enorme Pátria, com seus clima e natureza agressivos.
Por alimento, tinham o feijão com farinha, couve picadinha e o nutriente angu. Raramente comiam carne de gado. A de porco era mais comum. Galinha só quando essa estava doente e o escravo também. O escravo era muito valorizado em dinheiro. Ninguém queria perder um, principalmente quando era boa “peça”, isto é, forte e trabalhador. Valiam mais que a própria terra. A riqueza dos proprietários era calculada, geralmente, pelo número de escravos que possuíam e podiam tratar. Os negros faziam toda espécie de serviços, tanto nas fazendas, como nas cidades. Puxavam a enxada, roçavam os pastos, ordenhavam as vacas, tratavam dos porcos em chiqueiros fedorentos, davam milho às galinhas, arreavam os cavalos para os senhores, colhiam os cereais, ferravam os cavalos e marcavam o gado. Nas cidades levavam o lixo e latas de fezes, no ombro, para serem jogados fora da cidade. Podavam árvores do jardim e dos quintais, consertavam partes defeituosas da casa, furavam cisternas, cercavam as propriedades com muros de adobes por eles mesmos feitos.
As mulheres serviam como mucamas, escrava moça e sadia que ajudava em serviços caseiros. Muitas serviam como amas de leite para os filhos brancos do “sinhô”. Quando os partos coincidiam, e isto era relativamente frequente, a preta criava seu filho, mas deixando a maior parte do seu leite para o filho branco da “sinhá”. E tomava amor ao menino, que era apenas seu “filho de leite”. Mimava e adulava mais a ele que o próprio filho, amolengando nas mãos, quando já mais taludinho, o “capitão-de-feijão” que punha na boca gulosa. Pois os pretos, de tantos predicados, são ainda hoje ultrajados e em alguns países, metidos a bestas por se julgarem superiores, são até assassinados e separados da sociedade branca!
Sabemos, então, que os negros cativos eram propriedades dos senhores brancos. Quando um desses comprava o escravo, passava-se a escritura de posse, com todos os requisitos legais, como se faz atualmente, com a aquisição de qualquer imóvel. Com a morte dos senhores, os negros passavam-se, com os outros bens deixados pelo morto, para os herdeiros legítimos. Quando se tratava de um só escravo e vários herdeiros, cada um passava a possuir uma parte no cativo. É claro que a maioria dos senhores escravocratas tratava com espírito cristão os seus escravos. No Brasil, devido a índole boa do povo, os maus patrões foram exceção. Os patrões eram mais tolerantes do que as patroas, isto no entender de Gilberto Freyre, principalmente quando elas nutriam ciúmes de guapa moça preta com o marido.
Escritura em que um irmão vende sua parte que tinha num escravo para outro irmão. O documento original foi-me cedido pelo amigo José Juca Borges (Dozinho):
1861 – Dezembro – Dia 8. Título que passou Eduardo Pereira Caixeta e seu Irmão Manoel Pereira Caixeta.
Digo eu abaixo assignado, Eduardo Pereira Caixeta, que entre os bens que sou senhor possuidor com livre e geral administração, he por bem assim huma parte no Mulatinho João, que me coube por herança de minha fallecida Mãi Silveria Ferreira da Cunha, a qual parte vendi de minha livre e expontanea vontade, ao meu irmão Manoel José Caixeta, pela quantia de trinta e cinco mil reis – 35$000 –, que ao fazer esta recebi, ficando porém o Dito Comprador obrigado a pagar os direitos Nacionais e também eu obrigado a fazer-lhe esta venda bôa, para que em tempo algum nem eu, nem meos herdeiros, ou testamenteiros possamos disfaze-la, pois cedo na pessoa de meo comprador toda posse, juz dominio que no Dito Mulatinho tinha, e por ser verdade de todo o referido, firmo esta.
Santo Antonio dos Patos, 8 de dezembro de 1861.
aa) – Eduardo Pereira Caixeta.
Testemunhas: José Pereira Caixeta e José Vieira da Mota.
Este exemplo de um escravo patense deu-se, pela data 1861, em pleno regime de escravidão. Faltavam ainda 27 anos para sua libertação, em 13 de maio de 1888. Dez anos depois dessa escritura, aparecia a chamada Lei do Ventre Livre, que o Visconde do Rio Branco fez passar no Parlamento Brasileiro em 28 de setembro de 1871, que beneficiava a todos filhos de escravos que nascessem depois dela. Vamos dar exemplo de escravo nascido 8 meses antes dessa Lei, e de um vindo ao mundo já liberto, 2 meses depois dela. Os benefícios da lei eram garantidos pela própria Igreja, como veremos:
Aos quinze de Janeiro de mil oitocentos e setenta e um, baptisei solennemente e puz os Santos Oleos a Marçal, innocente nascido a treze de dezembro do anno proximo passado, filho legitimo de Manoel Pardo e de Thereza Parda, ambos escravos de Joaquim José de Sant’Anna e D. Amelia Augusta de Sant’Anna. Forão Padrinhos Carlos Antonio Friaça e Delfina Rosa de Macedo; e para constar mandei fazer este que firmo.
O Vigario Pe. Manoel Brito Freire.
Marçal teve que sofrer as agruras do cativeiro até a idade de 18 anos, porque, por infelicidade, nasceu alguns meses antes da Lai do Visconde do Rio Branco. Já o crioulo Pedro foi mais feliz por vir à luz do mundo dois meses depois da Ventre Livre:
Aos treze de Dezembro de mil oitocentos e setenta e um, o Rdo Manoel Antonio de Moraes com licença do Rdo Vigario Manoel de Brito Freire, baptisou solennemente e pôz os Santos Oleos a Pedro, inocente, nascido a trez de Dezembro deste anno, que em virtude da Lei de Vinte e Oito de Setembro, gosa das garantias da mesma Lei, filho legitimo de Domingos e Francisco Crioulos, escravos de Joaquim José de Sant’Anna e sua mulher. Forão Padrinhos: Cornelio José dos Santos e sua mulher D. Maria José dos Santos. E para constar mandei fazer este que firmo.
O Vigario Pe. Manoel Brito Freire.
* Fonte: Texto de Lincoln José de Sant’Ana publicado com o título “13 de Maio e Patos de Minas” na edição de 24 de maio de 1972 da Revista Jornal dos Municípios, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do Unipam.
* Foto: Publicação original, por Eitel Teixeira Dannemann.