Patos de Minas possui uma representação ligada à civilização e ao bem viver. Pelo menos quatro características simbolizam a cidade: bonita, tranquila, festiva, de gente hospitaleira. Uma representação tão bem urdida que desaguou na alegoria Patos Paris de princípios da década de 1990. Faz parte do imaginário da cidade, seja como expressão de orgulho ou como crítica política, a equivalência de Patos de Minas à capital francesa.
O projeto de cidade foi transmutado em fato e a construção deste fato se deu a partir da ação política dos Maciéis. Logo, a memória histórica de Patos de Minas está assentada na memória de um grupo social específico, aquele que se saiu vencedor no processo histórico de construção material e simbólica da cidade. Sua memória, alçada a memória do grupo, elide todas as demais memórias acerca do processo de construção da Cidade de Patos: seja a memória de outras frações da classe dominante local (os membros do PPPP-Partido Político Popular de Patos, liderado pelos Borges), seja das camadas populares, como negros, pobres e prostitutas confinados no bairro da Várzea.
Por outro lado, a representação bucólica de cidade bonita, tranquila, festiva e de gente hospitaleira decorre de um projeto político específico: o de retomar a visibilidade de Patos no cenário nacional, no contexto de maior recrudescência da Ditadura Militar. Concorre para isso, sem dúvida, a simbologia em torno da Festa do Milho, transformada em Festa Nacional do Milho – FENAMILHO (por decreto do Marechal Castelo Branco em 1964). Não obstante, se a recomposição simbólica da cidade passava pelo caráter “festivo e hospitaleiro” de seu povo, expressos aqui através da FENAMILHO, por outro lado, também impunha uma reorientação do seu passado, uma memória histórica plasmada, homogênea e pacífica conduzida pela benevolência e visão de futuro dos conservadores Maciéis.
Mas, quem foram os Maciéis e quais contornos assumiram seu projeto de cidade? Refletir sobre tais questões impõe considerar que este projeto se articulou às demandas postas em seu tempo, inclusive no que diz respeito à composição da classe à qual pertenciam os Maciéis. Em primeiro lugar, os “construtores do espaço” entenderam que a cidade precisava crescer. Logo, entre 1868 e 1929, aproximadamente, a Cidade de Patos se fazia. Em segundo lugar, o “vir a ser” da cidade tinha por pressuposto o alcance da civilização e não, necessariamente do “progresso” material. As duas ideias aparecem imbricadas nas falas dos Maciéis, ao longo dos sessenta anos que permaneceram à frente da administração de Patos. Entre 1868 e 1930, os Agentes do Executivo, primeiro da Vila de Santo Antônio dos Patos, depois da Cidade de Patos, com apenas duas exceções (Daniel Alves Belluco e Bernardino Antônio Borges), estavam ligados à família Maciel, seja por parentesco ou afinidade política. Com a República, de 1889 até 1930, a gestão do município ficou nas mãos de quatro Maciéis: Major Jerônimo Dias Maciel, Olegário Dias Maciel, Adélio Dias Maciel e Marcolino de Barros (cunhado de Olegário). Além disso, a mesa diretora da Câmara dos Vereadores era composta, via de regra, por Maciéis e seus correligionários, além de ocuparem, também, a maior parte das cadeiras da câmara.
Em 1868, o Major Jerônimo Dias Maciel, o 1.º Presidente da Câmara Municipal da Vila de Santo Antônio dos Patos, no pronunciamento alusivo à instalação da Vila, mira o futuro, ligando-o à civilização trazida com a navegação no Rio Paranaíba: Pois bem, quem sabe se em menos tempo que este lugar a ser criado e atingir à categoria de Vila, que ora tem, veremos do barranco do nosso Paranaíba, o fumo dos Vapores? E com estes, o desenvolvimento da indústria, do comercio, da civilização, e enfim tudo quanto se possa desejar! Jerônimo enxergava no desenvolvimento representado pelo “vapor” e não pela “locomotiva”, o desenvolvimento da civilização. Quarenta e nove anos depois, já proclamada a República, seu sobrinho Adélio Dias Maciel também enxergou na educação e não nos apitos do trem, o “progresso” da nascente cidade. Referindo-se à instalação do Grupo Escolar, em 1917 afirma: Não são somente affirmações do progresso, as acquisições que se traduzem em apitos de locomotivas e estabelecimentos industriais, na caprichosa estructura das elegantes edificações, que consultam ao luxo e á ostentação, no surgimento, enfim das bellas avenidas com todo o seu caudal de lojas, bars, casas de diversões, etc. em que se dá expansão á vaidade, aos gostos frívolos, ao desejo de exhibição. (…) Um Grupo Escolar, rigorosamente constituído, preenchendo cabalmente os seus fins, não é uma acquisição secundaria e vulgar. Tem alguma cousa de mais significativamente elevado, do que os marcos de adeantamento que apenas satisfazem o goso e a commodidade. E’ um núcleo de trabalho, de aperfeiçoamento, em que as intelligencias se dilatam, a vontade e o caracter se educam, as faculdades se manifestam e aperfeiçoam, abrindo á infancia um futuro até então desconhecido, e campos mais vastos e accessíveis para a applicação da actividade.
Havia, portanto uma ideia de progresso que informava as ações dos Maciéis em Patos. Mas esta noção não estava ligada ao progresso material representado pela indústria e os trilhos da locomotiva. Antes, progresso para os Dias Maciel articulava-se, como dito, à ideia de civilização, por sua vez dependente da educação, do saneamento, da higiene, da saúde pública, da distribuição de água potável, da estética da povoação.
Herdeiros da tradição política do Império e formados intelectualmente nela, os Dias Maciel optaram por imprimir à cidade que “iriam construir” os signos da civilização e não do progresso material. Por vários motivos. Mais particularmente, por três. Em primeiro lugar, porque o processo de construção de Patos inicia-se mesmo sob os auspícios do Império, em 1870, e a sua reafirmação simbólica em torno da civilização. Em segundo lugar, porque os Dias Maciel possuíam uma consciência discricionária, constituída no seio da tradição imperial do Brasil. Por direito de nascimento, entendiam que cabia a eles a missão histórica da ação política e, com ela, a criação da Cidade de Patos. Ainda que viessem, e vieram alinhar-se nas hostes do Partido Republicano Mineiro jamais adotaram medidas que, de acordo com o ideal republicano de riqueza, permitissem a democratização do poder.
A família Dias Maciel nunca deixou de ostentar, mesmo durante a República, nem as patentes da Guarda Nacional nem o título nobiliárquico do seu primeiro líder, o Coronel Antônio Dias Maciel, Barão de Araguari. A sucessão do Barão na liderança do clã foi feita por seu filho mais velho, Olegário. Este, embora fosse por direito o próximo Barão de Araguari, veio a ser reconhecido discricionariamente por outro título: o de Doutor Olegário.
A formação intelectual dos Dias Maciel está, em terceiro lugar, na raiz do projeto de cidade civilizada levada a termo por eles. Pois foi sua formação que os instrumentalizou na intervenção científica da urbe em conformidade com o modelo de tradição científica francês, importado pela Monarquia.
Todos os Maciéis que estiveram à frente do Executivo de Patos, entre 1868 e 1930, eram diplomados. O menos graduado, o Major Jerônimo Dias Maciel, era boticário, e professor de Latim e Francês, formado no Colégio Zacharias, de Pitangui, Minas Gerais. Olegário Dias Maciel era engenheiro civil, formado pela Escola Polytéchina do Rio de Janeiro. Marcolino de Barros, cunhado de Olegário, era advogado, formado na Faculdade de Direito do Recife. Adélio Dias Maciel era médico, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Os demais Maciéis, que ocuparam cargos públicos no período, bem como os correligionários, ligados ao clã por parentesco ou afinidade, possuíam formação humanista em nível preparatório e, ou, também formação superior, como: Ehphrasio José Rodrigues, médico; Noé Ferreira da Silva, dentista; Itagiba Ferreira da Silva, advogado; Agenor Dias Maciel, farmacêutico; João Maurício Pottier Monteiro, Advogado; Antônio Nogueira de Almeida Coelho, Advogado.
Sobre a “locomotiva”, infelizmente ela nunca chegou a Patos. Embora o Doutor Olegário Dias Maciel tenha se formado em 1878 na Escola Polytéchina do Rio de Janeiro, a mesma escola que formou um dos gênios da viação férrea do país, o Engenheiro Francisco Pereira Passos; embora em 1888 tenha sido nomeado Engenheiro Superintendente da Companhia Belga de Estrada de Ferro (de Pitanguy a Patos); embora, entre 1914 e 1918 tenha ocupado o cargo de inspetor geral do Serviço de Vias Férreas do Ministério de Viação e Obras Públicas do governo de Wenceslau Brás.
Ao contrário dos apitos da Maria Fumaça, das indústrias, do comércio palpitante e das oportunidades de enriquecimento, os Maciéis plantaram na Cidade de Patos outros símbolos de progresso, aqueles que conduziam à civilização e não à riqueza. Entre 1870 e 1933, dentre outros, investiram na canalização da água, na construção do jardim público, na reorientação do traçado urbano da cidade, saindo do vetor norte rumo a Paracatu e indo para o sul, nas terras planas da chapada; na abertura da Avenida da Liberdade (Getúlio Vargas), símile da Champs Elissés, em Paris; na construção do Cinema; na construção de um hospital, em medidas de saneamento básico, na construção do Grupo Escolar.
Entrementes, a intervenção urbana que coroa o projeto civilizacional dos Maciéis deu-se no apagar das luzes da própria vida de Olegário Maciel: a Escola Normal , inaugurada em 1933. Construída de frente ao palacete de Olegário, na Avenida Getúlio Vargas (antiga Av. da Liberdade), foi erguida em estilo europeu, com salão nobre, escadaria de ferro batidoinglês, vitrais vienenses, piano e todas as demais comodidades necessárias para “formar adequadamente os professores”.
Mas… para além da representação e para além do projeto de cidade civilizada planteado pelos Maciéis, o que é possível enxergar nas entrelinhas da memória vencedora? Ora, já sabemos que a memória vencedora dos Dias Maciel, alçada a memória histórica de Patos, ainda que elida os conflitos sociais, inclusive os conflitos no interior da camada dominante local, não é a única memória possível do processo histórico de constituição da cidade.
A memória dos Maciéis, não plasmou apenas os sujeitos das camadas populares. Também excluiu os conflitos políticos com os seus pares, desde as disputas com as famílias conservadoras de fins do século XIX, até a guerra com os Borges, no princípio do século XX. A memória dos Borges a respeito do conflito emerge da documentação privada. Desta, um insidioso relato, “Memórias de um garoto de recados”, como nomeou o próprio autor, desafia desde 1994 a memória histórica dos “Maciéis”.
Em 1924, a 5 de outubro, em reunião na residência do capitão Virgílio Caixeta de Queiroz, à Praça da Matriz, hoje Dom Eduardo, foi fundado o partido Político Popular de Patos, por diversos membros das famílias Queiroz, Caixeta e Borges. Constituiu-se no primeiro movimento organizado contra a política então dominante no município, quando Deiró Eunápio Borges foi escolhido para Presidente do Partido por aclamação. (…) Referia meu pai que, ante iminente derrota eleitoral de Olegário Maciel num pleito renhido, parece-me que em 1904, em Patos os mesários não compareceram às respectivas seções. Acorreram, então, os eleitores, à mais próxima, no arraial de Lagoa Formosa. Ali se encontrava o doutor Marcolino de Barros, na condição de fiscal dos Maciéis. Sob pretexto de defendê-lo, um bando de jagunços desfechou uma descarga de fuzilaria na casa de Randolfo Borges, local da seção. (…) A 17 de abril daquele ano [1927] realizou-se a primeira eleição municipal, após a fundação do PPPP. (…) Reeditou-se então em Lagoa Formosa (edição melhorada), a fuzilaria em casa de Randolfo Borges, agora tendo por alvo a casa de João Corrêa Borges, chefe oposicionista local e com sacrifício de vidas: Hasenclever Sebastião Borges foi atingido mortalmente, dentro da residência e Joaquim Furtado Araújo foi atingido na cabeça ao tentar saltar um muro.
Se aceitarmos sem questionar as memórias de ambos os grupos; desvestimos “um santo” para vestir outro. É preciso reconhecer que entre os herdeiros das facções políticas que disputavam o controle da cidade e, por suposto, sua construção, existe um embate de memórias. Afinal, a memória é, também, um campo de luta.
Contudo, as memórias em disputa, também elidem outras memórias, outras experiências que se davam no espaço urbano que se constituía e que, sem dúvida, se chocavam com os projetos de cidade que um e outro grupo defendiam.
Das entrelinhas da memória vencedora, eis que, saltam os sujeitos esquecidos. São as crianças pobres, pançudas de verminose que pés no chão, vagueiam pela cidade, “afrontando” a civilização dos ricos. São os negros que, desafiando a representação de cidade branca, na qual “não havia negros que se precisasse libertar”, seja pela Lei do Ventre Livre ou pela Abolição em 1888, saltam das páginas do Jornal O Trabalho, em 1905, na celebração de Nossa Senhora do Rosário. São as “putas”, que, confinadas no bairro da Várzea tornar-se-ão uma incômoda presença na trajetória civilizatória do espaço urbano de Patos de Minas.
* Fonte: Monografia A Cidade Republicana do Sertão Mineiro: Indagações Sobre a Memória Histórica de Patos de Minas-MG, de Rosa Maria Ferreira da Silva, aluna do Curso de Doutorado do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, com orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Clara Tomaz Machado. Participante do III Congresso Internacional de História da UFG / Jataí: História e Diversidade Cultural, de 25 a 27 de setembro de 2012.
* Foto 1: Antônio Dias Maciel, o Barão de Araguari, do arquivo de Newton Ferreira da Silva Maciel.
* Foto 2: Jerônimo Dias Maciel, do livro Domínio de Pecuários e Enxadachins, de Geraldo Fonseca.
* Foto 3: Olegário Dias Maciel, do arquivo do MuP.