O cão é uma criatura deveras inteligente. Muitos podem questionar essa afirmativa quando o percebem correr atrás de sua própria cauda ou correr desesperado atrás de um objeto inexistente lançado ao léu. Nada disso o impede de ser inteligente e, inclusive, sensitivo, pois ele percebe quando seu dono ou qualquer outro sujeito não está de bom humor, e mais ainda, tem alguns cães que conseguem perceber se determinado fulano é boa pinta ou não. Nos idos da década de 2000, o fato foi comprovado pelos clientes habituais de uma casa lotérica que funcionou à Rua Gabriel Pereira, quase em frente à Praça Ibrahim Pereira.
Um casal de cães da raça Caspa¹, os dois praticamente do mesmo porte, aparentando uns 10 quilos cada um, perambulava dia e noite pelo entorno. Sabe-se lá quem, alguém afeiçoou-se pelos animais e diariamente colocava ração e água ao lado da casa lotérica (talvez tenha sido ele quem lançou a moda hoje disseminada pelo Centro da Cidade). Curiosamente, todo final de mês e início do mês seguinte, época de enormes filas, os dois passavam o dia todo à porta da casa lotérica. Enquanto a parceira (de cor caramelo e uma falha na ponta da orelha esquerda) ficava confortavelmente deitada, invariavelmente o macho (totalmente negro e um pouquinho manco da pata dianteira esquerda) se levantava a todo o momento para vagar entre as pessoas da fila como que verificando se estava tudo em ordem. Enquanto isso recebia alguns afagos que eram retribuídos com ardorosa abanação de rabo e o danado do cão arriscava até um sorriso de agradecimento.
Os habituais frequentadores da casa lotérica admiravam aquele animal que aparentava grande inteligência. Aparentava coisa nenhuma, pois o danado mostrou que sabia que dois mais dois é igual à quatro. Num belo dia, loja cheia e fila invadindo passeio afora, como de costume o casal canino executava as tarefas tradicionais. Nisso entrou um bêbado, daqueles que incomodam até criança recém-nascida, e danou a importunar. Não deu nem meio minuto e o totó se levantou de seu canto e partiu rosnando para cima do etílico. Este, que não contava com aquela recepção, deu ¼ de volta (pois não conseguia dar nem meia volta) e se mandou catando cavacos. O cão, então, desfilou seu porte de herói entre os presentes e voltou a se aconchegar ao lado da amada, ocasião em que recebeu uma carinhosa lambida da cara metade, deixando bem claro que ali quem mandava era ele e ele não aceitava tipos inoportunos. Certa vez, chegaram dois sujeitos bem vestidos e se postaram na fila. Pouco mais de meio minuto depois, o cão se pôs de pé e começou a rosnar insistentemente para os dois, que, desconfortáveis, se retiraram apressadamente. Soube-se alguns dias depois que eram dois assaltantes armados.
Um dos frequentadores habituais da casa lotérica se lembra muito bem daqueles dois belos e inteligentes animais:
– Quem colocava ração e água para os dois era um senhorzinho que morava na Rua Antônio Bernardes, aquela ali à direita. Aqueles bichos pareciam até gente. Eu e muitos percebemos que antes de qualquer ação do macho, ele e sua parceira parecia que conversam entre si sobre todas as pessoas presentes na loja. Ela olhava profundamente nos olhos dele, e vice-versa, olhavam ambos para todas as pessoas presentes e só então ele se levantava para conferir o que sentiram de estranho. Coisa esquisita, sô. Acho que eles faziam isso porque imaginavam que quem os alimentava era o dono da lotérica. Então, olha só, os danados estavam retribuindo, né! Aí, a casa lotérica mudou-se lá pra frente, perto da Praça do Rosário. E ninguém mais os alimentou. Quem sabe, decepcionados com a ingratidão, sumiram e nunca mais foram vistos por aqui.
* 1: Cão Abandonado Sem Piedade Alguma.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Montagem de Eitel Teixeira Dannemann sobre foto publicada em 28/02/2013 com o título “Prefeitura em 1916”.