PONTE DO BIGODE

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TEXTO: OSWALDO AMORIM (1974)

Construir uma ponte de cimento armado sobre o Rio Paranaíba em Patos de Minas evidentemente não é a mesma coisa que estender uma pinguela de madeira sobre um córrego qualquer, no fundo do quintal de uma fazenda. Exige esforços e recursos consideráveis. A soma das dificuldades, entretanto, não desanimou o aparentemente frágil Bigode, nome de guerra de um homem de paz, o sitiante, e ex-vereador, José Luciano de Oliveira. Aparentemente. Na verdade, o pequeno e magro Bigode, além da coragem, revelou impressionante capacidade de trabalho, lembrando desses geradores altamente condensados, de pequeno porte e grande potência.

Morador do outro lado do rio ou do Porto das Posses, Bigode viu muitas vezes sua região, uma rica região de gado e lavoura, ilhada da cidade pelas cíclicas enchentes, que interrompiam quase sempre o movimento das balsas, com sérios transtornos e prejuízos para todo mundo. Um dia, olhando a torrente caudalosa que extravasa o leito, Bigode comentou com um amigo – como quem expressasse um sonho – que gostaria de construir uma ponte sobre o Rio Paranaíba, ali. O amigo sorriu – como quem sorri ante o anúncio de algo desejado, mas impossível.

Certamente era uma tarefa grande demais para o pequeno Bigode.

Mas, sem se impressionar com o vulto da tarefa (ou como o besouro que voa por ignorar a lei da gravidade, na jocosa explicação de um cientista), Bigode lançou-se a ela com raro apetite. E aos poucos, com a ajuda de muitos, conquistados pela sua fé, a ponte foi surgindo do nada.

Inegavelmente, ela corria o risco de ser uma ponte de muito entusiasmo e pouca técnica, refletindo de certo modo a imagem de seu construtor, que às vezes queria resolver os problemas mais a peito do que a jeito. (No início da obra, Bigode nivelou as cabeças da ponte no olho, como quem faz uma caprichada mira para atirar. Felizmente acertou quase na pinta). A salvação veio na pessoa do engenheiro Aires Aldo de Souza (da Transcon), que fez seu o ideal do Bigode, transformando-se num aliado inestimável.

Na verdade, Bigode teve toda uma legião de aliados valorosos, cuja ajuda tornou a ponte viável. Cada um como podia: um dava um boi, outro um leitão, frango, dúzias de ovos, uma saca de arroz ou de feijão. Outros, sem nada para dar, davam um ou vários dias de trabalho. Gente da cidade, sem nenhum interesse direto na ponte, deu sacas de cimento e dinheiro. Num comovente exemplo de solidariedade, uma moradora das imediações, lavou de graça as roupas dos trabalhadores durante toda a dura jornada da construção, que levou quase um ano.

Domingo último houve a festa da inauguração da ponte, com muitos elogios e tapinhas nas costas do Bigode. Mas a batalha não terminou. Houve quem dissesse que a inauguração foi precipitada, por faltar o acesso de um dos lados. Talvez. Mas quem dera fosse o maior problema. A falha pode e será rapidamente sanada, com a ajuda da Prefeitura. Mesmo depois disso, o problema persistirá. E, passada a emoção da festa inaugural, começará a tirar o sono do Bigode. Falo das enormes dívidas contraídas para a compra de materiais indispensáveis à seqüência da construção. (Houve instantes dramáticos, em que, por exemplo, a falta de cimento punha em risco todo o trabalho realizado antes).

Daqui a pouco a ponte estará aberta ao tráfego, livrando todos do desconforto, demora e riscos da cada vez mais precária balsa ao lado e permitindo uma comunicação mais rápida com a cidade, que dinamizará a economia da região beneficiada, sobretudo pela maior facilidade no escoamento de sua produção.

Mas é preciso lembrar que mesmo com a ponte pronta, a tarefa do Bigode não terminará: faltará o pagamento das dívidas. E não é justo que ele, que deu o máximo de si para uma obra de interesse coletivo, acabe com os poucos bens penhorados pelos credores. Logo, é necessário que aquele maravilhoso esforço de solidariedade que tornou possível, continue até o pagamento do último centavo – evitando que o herói de hoje acabe se transformando no vilão de amanhã.

Só assim poderemos cruzar a ponte sem remorso. O remorso de não ter ajudado como podia a quem tudo fez para merecê-lo: o bravo construtor da ponte, feita não apenas com ferro, cimento e areia, mas, sobretudo, com fé, suor e sacrifício.

* Fonte: Texto publicado originalmente no jornal Folha Diocesana em 14 de novembro de 1974 com o título “A Ponte da Solidariedade”. Posteriormente foi incluído no livro Queixa ao Bispo, uma coletânea de suas crônicas coordenada por Oswaldo Guimarães Amorim Filho e Oliveira Mello, em 2002.

* Foto: PatosAgora.

* Edição: Eitel Teixeira Dannemann.

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