BORGES, MACIÉIS E SUAS INFLUÊNCIAS NA PAISAGEM URBANA PATENSE

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7Patos de Minas possui uma configuração urbana no mínimo intrigante. Seu “cartão postal” é a Avenida Getúlio Vargas, intervenção localizada no princípio do período republicano, em tudo semelhante às avenidas abertas durante a República. Em princípio chamada de “Avenida Municipal”, a Getúlio Vargas é formada por duas largas faixas que atravessam de ponta a ponta o centro da cidade. Estende-se ao longo de sete quadras, além da Praça Dom Eduardo composta por mais três quadras. As quadras centrais, retangulares, se dispõem em formato de canteiros diferenciados entre si, compondo “praças” com arborização, paisagismo e mobiliário urbano. Considerada cartão postal da cidade, palco de comemorações, atrações, manifestações festivas, cívicas e religiosas, além de abrigar edifícios de interesse arquitetônico e histórico, a Avenida é testemunha da história da população patense.

A configuração urbana descrita acima não é novidade para as cidades do interior. Trata-se do que Murilo Marx (1991) chamou de “laicização do espaço urbano” quando, a partir de 1870, a racionalidade política e econômica substituiu a referência religiosa e pessoal da paisagem citadina, alcançando tanto os grandes centros quanto o interior do Brasil. Porém, a Avenida Getúlio Vargas de Patos de Minas abriga ao mesmo tempo duas configurações urbanas completamente diferentes: a “antiga”, do início do século XIX, que deu origem ao município e a “moderna”, do final do mesmo século. As três quadras iniciais da Avenida Getúlio Vargas são os vestígios do Largo da Matriz de Santo Antônio. Embora a matriz não exista mais, está referenciada no conjunto por dois monumentos: o Cruzeiro e o Monumento do Centenário.

O atual conjunto paisagístico, denominado de Praça Dom Eduardo, está no centro do núcleo original de povoamento, localizado ao norte. Fazem parte dele ruas estreitas e curvas que conduzem a travessas e becos nitidamente “semeadas” à moda lusitana de povoar. Ao mesmo tempo, os edifícios mais antigos e característicos da área são todos em estilo colonial, construídos a rés do chão, com altas janelas e portas retangulares. São exemplos a antiga Casa de Câmara e Cadeia, localizada hoje na Praça Juquinha Caixeta, e os casarões do Dr. João Borges e do Capitão Virgílio Caixeta de Queiroz.

A configuração urbana descrita acima se estende até a “Travessa dos Queiroz”, localizada atrás da Catedral de Santo Antônio, edificação erguida entre 1930 e 1954. A Catedral, o maior e mais imponente edifício religioso da cidade, demarca a passagem para o outro extremo da Avenida Getúlio Vargas: indo na direção sul, estende-se a parte moderna, planificada, com o traçado urbano em forma de tabuleiro, tal qual Belo Horizonte e a sua inspiração, a argentina La Plata com suas ruas largas, em plano ortogonal, atravessadas em diagonal pela avenida e, ainda, pelas ruas Major Gote e Doutor Marcolino.

Semelhante à Avenida da Liberdade, em Belo Horizonte, a Getúlio Vargas – depois da Catedral de Santo Antônio – também é margeada por imponentes edifícios, públicos e particulares, construídos de acordo com o mais republicano dos estilos: o eclético. Foi ali que se concentraram, no alvorecer da República, os símbolos do poder e de uma nova urbanidade. Assim, ao contrário da São Paulo do café que foi erguida sobre os escombros da São Paulo de taipa; da apoteótica reforma do Rio de Janeiro que “rasgou” a paisagem colonial para abrir largas e salubres avenidas, ao contrário mesmo de Belo Horizonte, uma espécie de “arcano do inteiramente outro” – só para lembrarmos de Olgária Matos –, Patos de Minas foi, literalmente, dividida em duas partes. Porém, a percepção de que a paisagem urbana central de Patos de Minas é dupla, passa ao largo dos trabalhos que direta ou indiretamente fizeram referência a ela.

BORGES 1Apoiando-se na leitura apresentada por Roberto Carlos dos Santos (2002), historiadores iniciáticos como Leonardo Latini Batista (2009) ou historiadores da Educação, como Rosicléia Ap. Lopes de Faria (2007), tomam indistintamente a cidade de Patos como um “lócus” privilegiado de “modernidade”. Dito de outra forma: a parte é tida como o todo, pois se concluiu precipitadamente que a modernização do lado sul de Patos de Minas foi um fenômeno que perpassou toda a cidade que existia em princípios do século XX. A leitura da urbanização de Patos como um fenômeno homogêneo é um equívoco que requer uma correção urgente. Em nome de uma história “a contrapelo” ou “vista de baixo”, esta leitura simplesmente referenda a historiografia que critica e permanece soterrando os conflitos sociais que marcaram a constituição da paisagem urbana de Patos de Minas.

A história da construção da paisagem urbana da cidade de Patos está marcada por um conflito social sangrento, dado entre duas famílias pertencentes à elite política local: os católicos e monarquistas Borges e os protestantes e republicanos Dias Maciel, chamados popularmente de “Maciéis”. As marcas dos Borges e seus parentes, os Caixeta e os Queiroz, permanecem intactas no núcleo urbano original da cidade. Os logradouros e prédios relembram a existência desses personagens, num desafio constante ao esquecimento. Ali estão a casa do Doutor João Borges, a rua e a casa de Deiró Borges, a rua do Tenente Bino, o Beco da Zélia, a Praça da Dona Genoveva, a Rua do Alfredo Borges, a Praça Chiquinho Caixeta, a Rua Dr. José Olímpio Borges, a Praça Dom Eduardo. E ainda a Travessa dos Queiroz onde se mantém de pé a casa do Capitão Virgílio Caixeta de Queiroz, palco de criação do partido de oposição oficial aos “Maciéis”. Na década de 1920 o imóvel já pertencia ao Capitão Virgílio Caixeta de Queiroz. Em 5 de outubro de 1924, os documentos registram que a casa do Capitão foi o palco escolhido para a oficialização da ruptura e do embate político direto com a poderosa família Dias Maciel, ou simplesmente os “Maciéis”. Para fazer frente aos Maciéis, reuniram-se na residência de Virgílio Caixeta representantes das famílias “Borges, Caixeta e Queiroz”, para fundar o “PPPP-Partido Político Popular de Patos”. O partido teve vida curta e nenhuma expressão na câmara municipal, embora tenha feito o vereador Deiró Eunápio Borges (eleito em 1936), seu idealizador e também presidente.

Do outro lado da Catedral, ligadas à modernização e à reordenação urbana da cidade, estão as marcas dos “Maciéis”, seus compadres e parentes. Cerraram fileiras em torno dos Dias Maciel as famílias Santana, Pacheco, Barros, Magalhães e Ferreira da Silva. Dentre estes eram genros do patriarca dos Maciéis, o Coronel Antônio Dias, e, por isso, cunhados de Olegário Maciel; o Coronel Arthur Thomaz de Magalhães, vereador e responsável pela construção do coreto, do jardim público e do cinema; Marcolino de Barros, advogado, agente do executivo, responsável por conduzir o processo de canalização da água e eletrificação da cidade; Noé Ferreira da Silva, dentista e vereador. Eram parentes por afinidade: Itagyba Augusto da Silva, irmão de Noé, advogado, responsável pela primeira linha telefônica e José de Santana, cunhado de Noé e Itagyba, compadre de Olegário pelo batismo de duas filhas, responsável pela sessão e posterior venda à municipalidade de terrenos da sua fazenda, nos limites do patrimônio doado pelo casal Silva Guerra. Os demais possuíam afinidade através dos laços de compadrio firmados nos batismos dos filhos. As marcas urbanas dos “Maciéis”: Escola Estadual Antônio Dias Maciel (Escola Normal), Rua Olegário Maciel, Casa de Olegário Maciel, Casa do Dr. Itagyba (Ferreira da Silva), Rua Farnese Maciel, Palacete de Amadeu Dias Maciel, Rua Major Gote (apelido de Sesóstres Dias Maciel), Hospital Regional Antônio Dias Maciel, Casa do Coronel Arthur Thomaz de Magalhães, Coreto Arthur Thomaz de Magalhães, Rua José de Santana, Escola Estadual Marcolino de Barros, Praça Antônio Dias, Rua Major Jerônimo (Dias Maciel), Praça Santana…

BORGES 2A documentação existente no Museu da Cidade de Patos de Minas, o MuP, demonstra que a reordenação de Patos – do núcleo original, ao norte, rumo ao vetor sul, na direção da Chapada e das terras da Igreja – se deu a partir de 1883, através de Olegário Dias Maciel, então Agente do Executivo: Indico que a Camara Municipal pela Commissão de Obras organise um plano para augmento da povoação desta Villa pelos lados da chapada, e proponha com urgência as medidas que julgar necessárias tomar para a execução do referido plano (18 de Abril de 1883). A “indicação” de Olegário foi rigorosamente acatada, conforme demonstram Borges e Silva: Seguiu-se a risca o “Plano Diretor” indicado por Olegário Maciel. Não por acaso, o vereador Eduardo Ferreira de Noronha em 21 de setembro de 1906 indica que: (…) a Câmara nomeie os doutores Olegário Maciel, Eufrásio José Rodrigues e Antônio Nogueira de Almeida Coelho para que, com seu patriotismo, auxiliem a Câmara a estudar o local mais conveniente em que se deve construir o matadouro e respectivo curral, oferecendo seu parecer. Hoje, distanciados no tempo, sabemos que a “Chapada” paulatinamente abrigou, além do Matadouro Municipal, a Casa do Coronel Farnese Dias Maciel, a Casa de Amadeu Dias Maciel, a Casa do Coronel Arthur Thomaz de Magalhães, o Passeio Público, a fonte luminosa, o Coreto, o Cinema, o Paço Municipal, o Hospital Antônio Dias Maciel, o Grupo Escolar, o Fórum (…) Pari Passu, também foram transladados outros elementos que se localizavam na direção para a qual a cidade ia se deslocando: a mudança do cemitério e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (frequentada pelos negros) também se constituiu como marco simbólico da nova ordenação urbana planeada por Olegário Maciel.

Olegário Dias Maciel era o filho mais velho do Coronel Antônio Dias Maciel, o grande chefe patense do Partido Liberal. Como primogênito já possuía o destino de ser o herdeiro político do pai. Em conformidade com a realidade cultural do período, tornou-se “doutor”, mas não bacharel em Direito, como era comum na época. Formou-se Engenheiro Civil em 1878 pela Escola Polytécnica do Rio de Janeiro (um dos berços do movimento republicano, lançado oficialmente em 1870), e formadora de outros engenheiros famosos como Pereira Passos, que empreendeu as reformas do Rio de Janeiro e um dos contemporâneos de Olegário, e Aarão Reis, que projetou Belo Horizonte.

Diante desses dados compreende-se a homenagem pós-mortem feita a Olegário Dias Maciel na paisagem urbana que ele mesmo projetou: “Plantado” no meio da quadra central da Avenida Getúlio Vargas, encontra-se um busto que o representa, posicionado de frente o sul, mirando a chapada. Entrementes, dada a posição em que foi colocado, o busto também se encontra de costas para a Catedral de Santo Antônio e para o núcleo original de povoamento, onde residiam os Borges. A documentação indica que até 1889, Borges e Maciéis conviviam. Embora os segundos não fossem frequentadores assíduos da igreja, sabemos que a conversão ao protestantismo dar-se-á apenas no princípio do século XX, por membros da segunda e terceira geração da família. Tudo indica que a contenda entre as duas famílias se iniciou por conta da República, conforme demonstra a ata da Câmara Municipal de 12 de dezembro de 1889: O vereador Sesóstris Dias Maciel, em 9 de dezembro de 1889, já proclamada a República no Brasil, apresentou a seguinte iniciação: “Indico que esta Câmara faça a sua adesão ao Governo hoje estabelecido conforme a redação que foi provada”. Posta em discussão e votos, foi aprovada contra o voto do vereador Olímpio Borges que, na sessão de 12 de dezembro, se declara contrário à República e exonera-se da Comissão de Redação, recebendo voto de louvor pelos serviços prestados.

BORGES 3Embora a opção monarquista dos Borges à revelia da opção republicana dos Maciéis tenha dado o colorido inicial ao conflito, a conversão ao protestantismo de Antônio Dias Maciel (1898 – 1964) neto do Coronel Antônio Dias, pode ter sido a “gota d’água” para uma oposição explícita dos católicos Borges ao clã situacionista Maciel. Advogado, juiz de direito, professor e pregador protestante, Antônio Dias Maciel é reconhecido como um dos fundadores do templo destinado à Igreja Presbiteriana em Patos de Minas. Foi também através dele que se criou na cidade uma escola de cunho evangélico, o Instituto Sul Americano. O Instituto foi a raiz da “Escola Normal”, idealizada por seu tio Olegário, então presidente do Estado, acusado de protestante no pleito de 1930 pelas Legiões Católicas fiéis a Melo Viana. Assim, o conflito entre Borges e Maciéis pode ser entendido não apenas como um conflito que opunha orientações políticas e partidárias diferentes. Ele nasceu tanto da diferença política quanto da diferença religiosa. Como exemplo, destacamos um trecho da intensa correspondência do então Cônego Fleury ao Bispo de Uberaba, fazendo referência à Escola Normal: A tal escola “anormal”, Snr. Bispo, é uma lástima lastimável e digna de toda lástima. O seu diretor [Antônio Dias Maciel], servindo-se de seu cargo, num prédio magestoso do governo, pago pelo governo, num estado e numa cidade catholica como Minas e Patos, auxiliado por alguns elementos, que só visam o ganho, vai distilando perfidamente o veneno da heresia nos corações das mocinhas que elle tem conseguido arrebatar. Já são diversas moças que elle maldosamente, tem arrastado para o “seu” protestantismo. Isto, que eu acho absurdo e uma injustiça clamorosa, num meio catholico como o de Patos, o governo manter na directoria de uma escola normal um fanático adversário das nossas crenças, que se serve do cargo para propaganda anticatholica e até política.

Em 2004, a Avenida Getúlio Vargas recebeu mais um indicativo simbólico da disputa entre as famílias: a Prefeitura de Patos de Minas postou (consciente ou inconscientemente) de costas para o busto de Olegário o busto que homenageia o Monsenhor Fleury.

O conflito entre “Borges e Maciéis” estendeu-se até a década de 1950, submerso nas legendas do PSD (Borges) e UDN (Maciéis). Diante do exposto podemos afirmar que de fins do século XIX até a metade da década de 1950, a cidade e seus sujeitos foram culturalmente “separados” através da sua afinidade com um ou outro grupo. Acreditamos que decorre da memória dessa experiência a compulsão “classificatória” da população de Patos de Minas. As pessoas são apreendidas sempre através de padrões duplos de classificação: os de Patos e os de fora; os patenses (nascidos em Patos) e os paturebas (o migrante que fixa residência em Patos). Igualmente, os indivíduos possuem uma ou outra afinidade “política”: PSD ou UDN, os Borges (“os popular”, como dizem os mais velhos) ou os Maciéis. Por isso, diante da pergunta fatídica de qual família você é?, o interlocutor, desconhecendo o passado da cidade, acredita precipitadamente que a pergunta requer como resposta exclusivamente o seu sobrenome. Em Patos de Minas a pergunta é, muito mais, uma aferição da pertença cultural dos indivíduos. “De qual família” significa de qual dos lados!

As cidades são mais que projetos. E os projetos, implantados, envolvem diretamente os indivíduos, sujeitos históricos, homens e mulheres que participaram e viveram na paisagem urbana que ia sendo modificada, transformando e sendo transformados por ela. Entretanto, a urdidura histórica que deu origem àquela paisagem e a “memória urbana” que se depreende deles é única. Por isso mesmo Patos de Minas é representativa das diferentes experiências culturais de urbanização que tiveram lugar no interior de Minas Gerais, entre a propaganda e a consolidação do regime republicano. Compreender essas diferenças nos ajudará, com certeza, a entender melhor as nossas semelhanças.

* Fonte: Sujeitos e Contextos: Conflitos Intra Classe na Construção da Cidade Republicana no Interior de Minas Gerais. Cidade de Patos, 1870 – 1933; de Rosa Maria Ferreira da Silva – Anais do XXVI Simpósio Nacional de História-ANPUH, São Paulo, julho de 2011.

* Foto 1: Avenida Getúlio Vargas na década de 1940 (Arquivo da Fundação Casa da Cultura do Milho).

* Foto 2: Casa de Virgílio Caixeta de Queiroz (Eitel Teixeira Dannemann / 09-06-2013).

* Foto 3: Palacete de Amadeu Dias Maciel (Arquivo do MuP).

* Foto 4: Casa do Dr. João Borges (Eitel Teixeira Dannemann / 09-06-2013).

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