ARCA DO ZÉ DA SORTE, A

Postado por e arquivado em ARTES, FERNANDO KITZINGER DANNEMANN, LITERATURA.

O Zé da Sorte, para quem ainda não ouviu falar dele, é um cidadão conhecido em Periquitinho Verde e redondezas como curador de males físicos e desassossegos espirituais, fornecedor de remédios preparados com ervas e raízes que ele mesmo busca ou manda buscar no mato, consertador do que não está dando certo na vida dos outros, colocador de pedra na farofa de quem não gostamos, encaminhador de corações masculinos e femininos rumo a novas relações amorosas, além de mais algumas atividades e qualificações misteriosas, tanto boas como más, ligadas ao que costumamos chamar de coisas do “outro mundo”.

Mas o que pouca gente sabe é que um dia desses o Zé acordou com cara de quem tinha perdido o rumo dos acontecimentos, e quando a Maria Augusta, sua mulher, o viu daquele jeito, preocupou-se e perguntou o que tinha acontecido, tendo ele revelado que havia recebido durante o sono uma importante incumbência vinda do Além, mas que estava em dúvida sobre se daria ou não conta do recado.

– Que incumbência é essa? – insistiu a esposa.

E o Zé da Sorte explicou:

– Me disseram que dentro de seis meses a chuva vai cair forte e sem parar durante 40 dias e 40 noites, ou então até que todo o Brasil esteja coberto pelas águas. A intenção de quem planejou esse aguaceiro é acabar com o que não presta aqui embaixo, mas como os justos não devem e nem podem pagar pelos pilantras e salafrários, o dono da idéia decidiu dar a mim a tarefa de construir uma arca de madeira e colocar dentro dela os periquitinhoverdenses honestos ainda existentes em nossa cidade, e além deles, mais um casal de cada espécie de animal doméstico e selvagem da região.

– Virgem Maria! De que tamanho então vai ter que ser essa arca?

– O portador da mensagem me explicou que ela não precisa ser muito grande porque como as coisas estão realmente feias para os brasileiros, no fim das contas não vai ter tanta gente assim para embarcar. Mas ele foi claro e direto quando disse que vou ter que pisar quente para terminar o meu trabalho dentro do prazo estipulado, pois quando a hora chegar… não vai ter escapula!

– Verdade, Zé?

– Pelo menos foi isso o que entendi.

– Uai, Zé, então se é mesmo desse jeito, o que é que você ainda está fazendo aí parado? Vamos lá, homem, mexa-se, porque o tempo não pára, o tempo voa! O prazo que lhe deram – seis meses, não foi? – é apertado pra burro, e se você não pisar quente como o tal mensageiro lhe disse, não vai dar conta do recado.

E foi isso o que o Zé da Sorte tratou de fazer.  Quase três meses depois, quando relâmpagos começaram a cruzar o céu enegrecido por nuvens ameaçadoras, e trovões passaram a dar aviso de que a natureza preparava alguma coisa séria para despejar sobre a terra,  o Zé da Sorte,  desanimado da vida, encontrava-se sentado em um tamborete, no quintal de sua casa, no momento em que ouviu uma voz vinda aparentemente do pé de boldo existente no canteiro logo à sua frente:

– Onde está a arca?

Preocupado com a cobrança que lhe faziam, o Zé da Sorte tratou de ensaiar uma desculpa:

– A senhora me perdoe, dona voz, porque não tenho nenhuma notícia boa para lhe dar – respondeu aflito o Zé da Sorte. – Tenho certeza de que aí em cima todo mundo é testemunha de que tentar fazer a tal da arca eu bem que tentei, mas o buraco aqui em Periquitinho Verde é mais embaixo, as dificuldades são tantas, que tudo o que a gente precisa conseguir em qualquer órgão público não sai de jeito nenhum, fica emperrado, travado, entra semana e sai semana.

– Conte-me o que aconteceu?

– Bem, primeiro tive que obter a licença da prefeitura, que me cobrou uma taxa altíssima para fornecer o alvará necessário. Como se isso não bastasse, acabaram me pedindo contribuição para a campanha do prefeito Noraldino, que é candidato à reeleição, e aí não tive outro recurso senão molhar a mão do tesoureiro do PTPN – Partido Tudo para Nós, que é o encarregado da pedição. Como eu tinha necessidade de grana para comprar a madeira de que precisava, procurei os bancos, mas não consegui nenhum empréstimo, mesmo estando disposto a pagar aquelas taxas de juros absurdas, cobradas dos coitados que recorrem a eles. Para falar a verdade, isso não me importava nem um pouco porque, afinal de contas, o gerente da agência bancária não teria mesmo como me cobrar a dívida contraída depois que as chuvas começassem a cair. Mesmo assim não esmoreci e dei continuidade ao projeto que havia elaborado, mas quando o Corpo de Bombeiros tomou conhecimento do que deveria ser feito, exigiu a instalação de um sistema de prevenção de incêndios que por sinal é fabricado pela firma de um irmão do comandante da corporação, mas dessa armação consegui escapulir porque subornei um funcionário deles com cem pratas. O danado do homem não deixou por menos de jeito nenhum.

– Continue – interveio a voz.

– Aí eu decidi extrair a madeira de que precisava na fazenda de um compadre meu que me deve muita obrigação, mas bastou pensar nessa hipótese para os problemas com o Ibama começarem a surgir. Eu disse a eles que se pretendia cortar algumas árvores era porque tinha recebido ordens de vocês aí de cima, porém o fiscal do órgão achou que minha explicação era uma piada sem graça, perguntou se o meu projeto fazia parte de um tal de PPA, que não sei o que significa, e então, diante da evidente má vontade do funcionário, tentei falar com o chefe dele, pois sempre me disseram que dependendo da situação, só mesmo o chefe para resolver certas pendências. Foi quando descobri que naquele momento não havia no Ibama ninguém comandando a nossa área, e que, além disso, os políticos estavam barganhando o cargo no congresso em troca da aprovação de alguma coisa, mas como a nomeação não conseguia ser definida porque os interessados na boca eram muitos, o negócio estava virando uma briga de foice no escuro. Acontece que nesse meio-tempo,  para meu azar, o Ibama descobriu em meu quintal um viveiro com dois casais de canários-da-terra, e por esse motivo os homens me aplicaram uma multa.

– Sacanagem! – deixou escapulir a voz, mas desconcertada com o que dissera ela imediatamente pediu desculpas pelo palavreado inadequado e solicitou que o Zé prosseguisse com a explanação.

– Nessa altura do campeonato eu já estava “p” da vida, e por isso achei que o melhor a fazer seria dar uma banana para tudo e começar a obra no peito e na raça, porque cada dia perdido naquele chove-não-molha representava uma diminuição irrecuperável no prazo que havia sido estipulado. Foi quando me apareceu o representante de um sindicato trabalhista exigindo que os marceneiros que eu pretendia contratar recebessem um documento onde constasse a garantia de que eles teriam um ano de emprego assegurado, mas apesar desse forçamento de barra eu preferi não criar nenhum caso porque sabia que dentro de mais alguns dias aquele pessoal já teria ido dessa para melhor, e sendo assim, que importância teria o documento que eles me pediam, não é mesmo? Aí, como o problema surgido com a turma do sindicato dos marceneiros já estava aparentemente resolvido, quem foi que decidiu aparecer aqui em casa?

– Nem desconfio…

– Foi um fiscal da Receita Federal com cara de mau e falando em sinais exteriores de riqueza, insinuação que ele aproveitou como motivo para a aplicação de uma multa cujo valor ainda não sei qual é, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Depois dessa eu pensei que a leréia tinha terminado, mas que engano…  Porque logo depois dele quem me procurou foi um representante da Secretaria do Meio-Ambiente, que alertado pelos seus colegas do Ibama resolveu me pedir o Relatório de Impacto Ambiental sobre a zona a ser inundada, como se fosse do meu conhecimento o que vocês do mundo aí de cima, estão pretendendo fazer conosco, do mundo aqui de baixo. Para não deixá-lo sem resposta mostrei-lhe o mapa do Brasil, o que fez o homem me encarar desconfiado, sair de fininho, pegar o celular e telefonar para o serviço psiquiátrico do município, provavelmente imaginando estar diante de um biruta perigoso ou algo assemelhado.

– Que coisa, sô…

– Pois é! Diante desse enrosco em que eu estava me metendo, pensei em reclamar diretamente com o prefeito porque, afinal de contas, chefe é chefe, mas ao ligar para o seu gabinete me disseram que ele havia comprado um avião em nome da prefeitura, e embarcado nele para a China, com mais duzentas pessoas, formando uma caravana comercial cujo objetivo era o de tentar firmar contratos para abastecer o mercado chinês com as pamonhas e os mingaus de milho verde “made in Periquitinho Verde”.

Nesse momento o Zé da Sorte já estava quase chorando, mas ao olhar para o alto e perceber que as nuvens negras desapareciam rapidamente do céu, que os trovões não mais eram ouvidos, e que os relâmpagos simplesmente haviam sumido, ele perguntou ansioso:

– O que é isso? Será que vocês não estão mais pretendendo destruir o Brasil? E que nossa Periquitinho Verde está livre do afogamento?

É verdade! – lhe respondeu a voz vinda do pé de boldo. – Seu relato nos convenceu plenamente de que a punição que pretendíamos aplicar se tornou desnecessária porque aí na sua terra alguém já se encarregou de fazer isso.

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