“GELADEIRA” DO COLÉGIO MUNICIPAL, A

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O jornalista Laércio Rocha (1951-2017), aluno da primeira série ginasial do Municipal em 1963, relatou os dissabores do controle disciplinar da direção e revelou a existência da “geladeira”, local de punição dos alunos, que passou a ser utilizada, coincidentemente, a partir do início da ditadura militar brasileira. Segundo Laércio Rocha,

O Colégio Municipal¹ funcionava como uma estrutura militarizada, sob a direção de Terezinha de Deus Fonseca. Todos os dias, ao chegarmos, era feita uma averiguação do uniforme, se estava completo. Caso contrário, o aluno era dispensado. Depois, entrávamos na fila e passava-se em revista: olhavam-se as unhas, o cabelo, as meias, a blusa […]. Diante desse controle e de outras regras impostas pela direção, eu, Gimirão, Augusto Carvalho e outros fizemos um movimento de contestação. Em vão, pois quem contrariava os interesses da diretora, ia parar na “geladeira” (debaixo da escada que dá acesso ao 2.º andar; era uma sala lúgubre e úmida, que não pegava sol), local de destino dos alunos que não aceitavam as imposições da Terezinha.

Belchior Cândido, contemporâneo de Laércio Rocha, também estudante da primeira série do Ginásio no ano de 1963, é um crítico pertinaz do uso indiscriminado da “geladeira” pela direção da escola. Veja a análise bastante interessante que ele faz da “geladeira” como um meio de constrangimento dos alunos:

Quando acontecia qualquer desavença dentro da sala de aula entre alunos e professores, estes encaminhavam os alunos para fora da sala. Duas ou três vezes, frequentei a célebre “geladeira”, conduzido “educadamente” pelo inspetor de aluno. A “geladeira” consistia em um local bastante apertado, pequeno, debaixo das escadas que dão acesso ao segundo pavimento. Ali, ficávamos isolados durante algumas horas para mostrar aos demais que estávamos sendo punidos. Acredito que depois do golpe civil-militar de 1964, a “geladeira” se consolidou como um espaço de punição para os alunos que se rebelavam contra qualquer coisa dentro da sala de aula. A “geladeira” tinha um significado subliminar, para castigar e constranger os alunos diante de seus pares. A direção, sob o comando de Terezinha Fonseca, não mostrava nenhum diálogo com os alunos para a correção de rumos e preferia, assim, encaminhá-los diretamente para a “geladeira”. Desta forma, prevaleciam as ordens intransigentes da direção do Colégio. As duas ou três vezes em que estive na “geladeira” foram motivadas por simples conversas paralelas dentro da sala de aula.

Ainda sobre a temida “geladeira”, que funcionou nos idos da década de 1960/1970, o aluno Tenório Silva Santos, ex-presidente do Grêmio Estudantil Paulo Setúbal, revela:

A “geladeira” consistia na maneira truculenta e autoritária da direção do Colégio para reprimir aqueles alunos com o comportamento fora do padrão de moral adotado pela escola, digamos, aqueles mais “levados”. Fui um deles, admito. Frequentei muitas vezes a “geladeira”. No intervalo das aulas, o recreio, como era conhecido, o aluno faltoso, julgado sem o contraditório e sem o devido procedimento, era detido, incomunicável, na geladeira, que se resumia no local de despensa do Colégio, tipo calabouço, entre material de limpeza, panos, latas de ceras e vassouras, localizado debaixo das escadas que dão acesso ao segundo andar do prédio.

José Jorge Vieira, que ingressou na 1.ª série ginasial no ano de 1969, ou seja, dois meses após a edição do famígero Ato Institucional n. 5 (AI-5) também salienta sobre a infame e indigna “geladeira” que punia os adolescentes:

Alunos indisciplinados quase não havia no Colégio, devido à rigidez disciplinar e, para qualquer desvio de comportamento, o castigo era permanecer o tempo todo e, às vezes, até após as aulas, na temível “geladeira”, comodozinho frio e sem ventilação embaixo das escadas que acessam para o segundo piso. Como era vergonhoso e intimidador estar lá! Que o diga alguns famosos frequentadores do espaço, como o Toniquinho, o Tenório e o Portinho.

Ademais, observa-se que a inserção do aluno na “geladeira” − locus de castigo − se dava, muitas vezes, por motivos insignificantes, mesmo que o professor pudesse contornar a situação dentro da sala de aula. Essa é a opinião de Teotônio de Araújo Franco Filho (61 anos), empresário, em entrevista:

A “geladeira” era um local de castigo para punir os alunos. A punição exemplar era por qualquer motivo de suposta “perturbação” dentro da sala de aula, ou seja, conversas entre colegas; também por brigas no recreio ou por outras razões fúteis. O professor colocava o aluno para fora da sala e os inspetores Balá e Mauro já nos encaminhava para a geladeira. Às vezes, a Diretora nos deixava desde o primeiro horário até o último naquele ambiente frio.

Outro aluno que não guarda boas recordações da “geladeira” é o advogado Marcos Antônio Cunha (63 anos). Ele nos fala sobre aquele espaço indesejado pelos alunos e as origens de seu apelido Xicletes:

Frequentei algumas vezes a geladeira no Colégio Estadual. Aquilo era tão humilhante quanto a solitária de uma prisão. Os colegas passavam por perto ironizando e nos expondo ao ridículo. Quando estava na 1.ª série ginasial, turma E (ainda sei o nome dos 30 colegas, em ordem alfabética), na hora da chamada, fui vítima de racismo por parte de um professor, que disse: “Sabia que preto é chiclete de onça?” Reagi à ofensa, jogando um apagador nele. Em consequência, ele me encaminhou à diretora Terezinha, a qual não quis ouvir os meus argumentos e já me despachou diretamente para a “geladeira”. […] A partir desse episódio, passei a ser chamado de chiclete de onça por muito tempo, apelido originado de uma crença racista de que a onça não engole um negro, apenas o mastiga e joga fora. Posteriormente, acabei assumindo a alcunha de Xicletes.

Na verdade, não se sabe se a denominação de “geladeira” dada pelos alunos do Colégio Municipal é uma alusão à “prisão ladrilhada ou acimentada”, conforme o Dicionário do Houaiss e/ou a modalidade ou tecnologia de tortura conhecida como “geladeira”, equipamento de origem inglesa, largamente, utilizado pelos militares brasileiros durante os “anos de chumbo”.

* 1: O Colégio Municipal de Patos de Minas foi criado em 26 de fevereiro de 1959 através da Lei n.º 490, sancionada pelo prefeito Sebastião Alves do Nascimento (Binga). Foi instalado em 12 de fevereiro de 1960. Em 19 de maio de 1964, o governador Magalhães Pinto transformou-o em Colégio Estadual de Patos de Minas, através da Lei n.º 3115, instalado em 10 de fevereiro de 1965. Em 08 de julho de 1971, o governador Rondon Pacheco, através da Lei n.º 5.743, denominou-o Colégio Estadual Professor Zama Maciel. A partir de 1975, é denominado Escola Estadual Professor Zama Maciel.

* Fonte: Livro “Colégio Estadual de Patos de Minas − Memórias de Sua Criação” (2107), de Altamir Fernandes.

* Foto (Eitel Teixeira Dannemann-14/11/2019): As duas portas do famigerado local da “geladeira”.

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