VEREANÇA: DO CAOS À LAMA

Postado por e arquivado em ARTIGOS.

VEREANÇATEXTO: EITEL TEIXEIRA DANNEMANN (2016)

Quando a colonização portuguesa se intensificou no país do pau brasil, e com as investidas de holandeses e franceses, a Coroa sentiu necessidade  de controlar e organizar as cidades e vilas que se desenvolviam, peças fundamentais na geração de divisas. O vereador surgiu no âmago desta situação conflituosa. A origem remota do termo é verea, forma arcaica de vereda (caminho, estrada secundária, senda), de onde surgiu o verbo verear, com o significado primitivo de administrar as estradas e os caminhos. Pouco a pouco, os vereadores foram assumindo outras atividades ligadas ao bom funcionamento da comunidade, ações inerentes que atualmente constituem a vereança.

Na histórica data de 29 de fevereiro de 1868 aconteceu a instalação efetiva da Vila de Santo Antonio de Patos, dia da posse de sua primeira Câmara Municipal. A eleição foi realizada em 08 de dezembro de 1867. A apuração geral foi efetuada em Patrocínio, presidida pelo 1.º Juiz de Paz do novo município, Joaquim José de Santana. Foram eleitos 07 vereadores: Antônio Correia da Silva, Antônio José Coelho, Cândido da Rocha Camacho, Jerônimo Dias Maciel, José Alves Pinto, José Pereira Guimarães e Manoel José da Motta.

Nos primórdios, os vereadores eram conhecidos popularmente como homens bons, invariavelmente pessoas ricas e influentes (grandes proprietários de terras, doutores, comerciantes) da vila, ou seja, integrantes da elite colonial, independentemente do grau cultural de cada um, muitos deles analfabetos. Somente os integrantes desta elite colonial podiam ser eleitos para exercer o cargo de vereador. Escravos, judeus, estrangeiros, mulheres e degredados não podiam se tornar vereadores.

Os sete integrantes que compuseram a 1.ª Câmara Municipal da então Vila de Santo Antonio de Patos faziam parte deste escol. Um escol que pela primeira vez tinha o poder de comandar o município depois de muita luta política. Dá para se imaginar que no início reinou um certo caos para se concatenar as ideias, pois deveriam ser inúmeras com a recém liberdade. Afinal, foram obrigados a decidirem seus próprios destinos. Não havia experiência suficiente, apenas o caos da vontade voluntária. Se inicialmente houve divergências contundentes ou não, desconhece-se. O que se sabe é que o Major Jerônimo Dias Maciel era um líder nato, inteligentíssimo, e amparado pelo astuto e cordato irmão Coronel Antônio Dias Maciel, uma autêntica raposa, ambos tomaram as rédeas do poder, que só viria a ser ameaçado alguns anos adiante com a chegada dos Borges. Fazem parte da História os homéricos embates verbais e as vias de fato entre as duas famílias.

Durante muitas décadas, passando pela transição colônia-república e Revolução de 1930, a cidade esteve sempre nas mãos de um pequeno grupo que produzia ou participava do progresso local, independentemente se alguns deles sabia escrever ou não. Não importava ser doutor ou analfabeto. Bastava simplesmente pertencer à elite e viver o caos ideológico do poder sendo útil à comunidade com a característica marcante de que nenhum deles recebia um mísero réis para desempenhar seu papel de representante do povo. Assim o caos ideológico pelo poder, unicamente pelo poder, reinou durante anos, até que, aos poucos, paulatinamente, com as transformações naturais na conjuntura política, tal ideologia foi sendo substituída pelo caos interesseiro, a busca por apenas estar no meio da elite para se usufruir dela, sem maiores delongas sobre as necessidades do povo. O objetivo era estar entre eles, apenas isso, e tentar tirar o melhor proveito possível.

Esta transformação, de maneira gradual e até desapercebida pela elite da situação, foi produzida pela presença cada vez maior de cidadãos “menos afortunados” nas discussões políticas, o que motivou de maneira substancial o surgimento dos chamados partidos populares, partidos estes invariavelmente comandados pela elite opositora no intuito único de lutarem contra a fleuma dominante. E os menos afortunados formavam a massa que mantinham os dois tipos de elite política.

Mesmo participando ativamente da vida política do município, a maioria desconhecia qualquer assunto relativo a serviço público. Ou eram iletrados ou parcos de neurônios. Mas interessavam aos comandantes de ambos os lados. Entrávamos na era dos coronéis, os mandatários do pedaço, aqueles que indicavam o voto aos menos afortunados. Nesta altura do campeonato, o ideal municipalista dos irmãos Antônio e Jerônimo já era coisa do passado. O que importava agora era brigar com unhas e dentes pelo poder, manipulando os incautos, pela necessidade orgástica de estar no poder. Em contrapartida, pelo menos isso, continuavam nada recebendo por serem vereadores. Se uma coisa compensava a outra, não se sabe, mas eles não possuíam gabinetes nem tinham assessores a sua disposição, utilizavam carro próprio para comparecer às reuniões e o consumo da gasolina pagavam do próprio bolso. Dependendo da situação financeira do edil, este usava as velhas jardineiras para os deslocamentos semanais dos distritos à sede.

A partir do fim da Era Vargas, quando as Câmaras Municipais voltaram à ativa, os coronéis foram mais do que nunca relevantes na conduta dos destinos de Patos de Minas. As atas de nossa Casa Legislativa registra embates homéricos e muitas vezes constrangedores entre edis, verdadeiras contendas de ego em favor de algum coronel (partido), que na maioria das vezes empacou ou atrasou o nosso progresso, apesar de estar entre eles mentes privilegiadas e probas. Infelizmente, o ideal partidário da maioria é que comandava as ações. Por causa destes egocentrismos, Patos de Minas desacelerou em vários momentos.

DSC03090Até que chegou um dia em que unicamente o ideal político pelo poder não era mais o bastante. O ideal pelo poder em nome do povo, mas substancialmente a necessidade de se manter na classe dominante e se usufruir dela, começou a sofrer uma transformação efetiva quando os edis das capitais e cidades de população acima de 200 mil habitantes obtiveram a legalidade de receber remuneração (Artigo 15, inciso II, parágrafo 2.º, da Constituição de 1969). Esta discussão de salários somente chegou à Câmara Municipal de Patos de Minas quatro anos depois, em 07 de maio de 1973. Desinformado sobre a Lei já existente, o vereador Sebastião Versiani avisa que tramita pelo Congresso projeto que visa remuneração do vereador. Ele requer que a Casa seja idealizadora de uma campanha junto a todas as Câmaras do Estado para que solicitem aos deputados de suas regiões uma campanha reivindicatória dessa remuneração aos vereadores.

Foi o fim do caos político e o início da lama política, que se intensificou com a Emenda Constitucional n.º 3, de 1975, que assim determina: A remuneração dos Vereadores será fixada pelas respectivas Câmaras Municipais para a legislatura seguinte, nos limites e segundo critérios estabelecidos em Lei Complementar Federal. Dois anos após, na sessão de 1.º de junho de 1977, a Mesa Diretora da Câmara Municipal de Patos de Minas encaminhou à Presidência o projeto de resolução 001/77 que fixa a remuneração dos vereadores.

No submundo tétrico da politicagem, a determinação oficial de pagar salários a vereadores nada mais foi do que uma ação evidentemente política do regime militar, de fortalecimento do poder ditatorial que começava a enfrentar forte resistência, não popular, mas das elites intelectuais e religiosas da época. Quem estava no poder era o general Ernesto Geisel. Com o objetivo de buscar apoio nas bases e reforçar politicamente o partido do governo, o Comandante-mor da oportunidade resolveu, então, presentear a base municipal política, os vereadores, com salários, objetivando que estes apoiassem o modelo político vigente. A História nos mostra que o tiro saiu pela culatra. A coisa se transformou num convite à busca, unicamente, pelo sabor de um bom salário, sem a mínima noção do dever legislativo, com as devidas exceções de alguns homens éticos e comprometidos com a municipalidade que marcaram sua passagem na Câmara Municipal de Patos de Minas.

As décadas foram se sucedendo e, gradualmente, sem que a massa trabalhadora percebesse, foram sendo estabelecidos extensivos valores salariais e vantagens pecuniárias até o extremo a que se chegou agora onde o salário dos vereadores é o maior em vários municípios para uma ou duas reuniões por semana, um autêntico desrespeito ao operariado que trabalha oito horas por dia, às vezes até em sete dias da semana, recebendo uma insignificância em comparação ao que recebe um integrante da Câmara instalado em gabinetes climatizados e cercados de mordomias diversas. Uma grande discrepância, pois o mandato nada mais é do que uma prestação de serviços à comunidade, e não um emprego.

O pagamento de salários a vereadores decretou o fim, efetivamente, do caos ideológico unicamente pelo poder. Desde então a vereança se transformou numa fonte de renda considerável para muita gente, numa grande oportunidade de, em quatro anos, juntar uma quantia financeira considerável que jamais conseguiria nem com um imenso tempo trabalhado arduamente, independentemente do eleito ter ou não noção do que significa vereança. Foi-se o ideal de poder, de participar da elite que comanda o poder e usufruir alguma benesse justamente por estar envolvido com os que dominam. Agora, nada mais importa. Aliás, agora, o que importa são unicamente as benesses. Dane-se o poder. As benesses é que importam. Isso explica o porquê, a cada eleição, o número de candidatos se agiganta.

E quando eleito, para manter o mandato, com raríssimas exceções, o vereador usa apelo popularesco e se dedica em tempo quase integral à assistência social, o que não é, em absoluto, sua função. Isso se explica na verdade de que a grande maioria não tem a mínima noção do que significa vereança. Todavia ele se transforma numa espécie de despachante do povo junto aos órgãos públicos de atendimento social que aceitam e facilitam a intermediação porque o prefeito também depende do apoio do vereador. Este assistencialismo é, portanto, atividade eleitoreira, não faz parte de suas atribuições precípuas que são: legislar, fiscalizar as ações do executivo (fundamentalmente na obrigatoriedade das Leis contidas em nossos códigos e/ou estatutos) e discutir temas de interesse dos bairros que representam para atendimento das necessidades coletivas, deixando a assistência social individual a cargo dos organismos próprios.

Segundo informação da ONU, entre 181 dos países filiados o Brasil é o único que remunera vereadores nos moldes que conhecemos. Como desde 2009 tramitam no Congresso propostas de redução e até mesmo extinção dos salários dos vereadores, é bom repensar e debater a questão para reforçar os argumentos. O carreirismo e o alto preço das campanhas inibem cidadãos com disposição para trabalhar, mas com poucas posses para enfrentar os “profissionais” acabam desestimulados. Em consequência, cai o nível das representações municipais, existe pouca renovação tanto de nomes quanto de ideias, o que inevitavelmente redunda em prejuízos aos municípios.

De acordo com o TRE-MG, 210 (duzentos e dez) candidatos vão disputar as 17 vagas disponíveis em Patos de Minas nesta eleição de 2016 num eleitorado de 108.071 pessoas. O número assusta para aqueles que ainda sonham com o tempo em que ser vereador era uma ação voluntariosa em prol do município. Os saudosistas percebem que é raro, entre os 210 concorrentes, aquele que pelo menos tenha noção do que seja e o que representa, por exemplo, o nosso Código de Posturas. Os que ficaram de fora querem voltar; novatos querem entrar; e os atuais querem continuar. Afinal, com a remuneração tentadora para pouquíssimo trabalho, quem não quer? Enquanto isso, Patos de Minas com pressa ou sem pressa se afunda na mediocridade política, como bem provou a atual administração que, graças, se encerra. Administração esta onde o executivo não executou – brincando no seu castelo de areia – e o legislativo não legislou – brincando quatro horas por semana em seu parquinho de diversões!

Foi-se o caos. Instituiu-se a lama!

* Foto 1: Inesc.org.br.

* Foto 2 (30/08/2016): Eitel Teixeira Dannemann. Coincidência ou não, a Câmara Municipal acima da Justiça Federal.

Compartilhe