NUM TEMPO E LUGAR QUALQUER

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

Era um lindo entardecer. A luz dourada do sol entrava nas retinas com força, pacientemente. Não havia tensão naqueles raios solares, somente serenidade. Havia também serenidade no mar. Ondas amenas, espumas brandas, um forte odor de maresia. Aquele cheiro trazia muitas nuanças. Havia nele verdades, dúvidas, natureza, divindade. O som daquelas ondas era como sonífero. O vai-e-vem das águas era fascinante. Como se apresentava belo o mar. Como era prazeroso aquele odor, aquela sensação de umidade no rosto. Ali estava eu, sentado nas areias de uma praia qualquer, num tempo qualquer, sem qualquer a meu lado. Apenas eu. Sem qualquer.

No céu de um azul fortificante, andorinhas e gaivotas disputavam espaço. As aves subiam e desciam, em gestos e artes cronometrados. Quando viam uma presa nas águas, o mergulho era fatal e direto. Certo. Com o alimento preso no bico, só se via a satisfação do garantir a espécie. Para ela, a ave. Pois para o peixe, uma vida se foi. Alimento. Renovação da natureza. E eu ali nas areias daquela praia qualquer, num tempo qualquer, numa solidão qualquer. Sozinho. Sem qualquer.

Mas havia muita serenidade ao meu lado. Eu estava coberto de serenidade. Estava apenas ali, sem programação, apenas por querer, desejo, sensação de alguma coisa qualquer. Sei lá porque estava ali. Talvez apenas pelo lugar, sua beleza, sua realidade. Meus olhos fitavam tudo à volta. Cada espuma das ondas, cada gritar das gaivotas, a presença de um siri. Sim, bem perto de mim havia uma toca de um siri da praia, daqueles brancos e pequenos. Lindas criaturas. Desconfiados que nem eles só. Frágeis e astutos. Ele direcionou aqueles olhos pontudos para fora do pequeno buraco, espreitando o ambiente. Eu ali, sentado e quieto. Imóvel. Apenas admirando aquela dócil criatura. Seus olhinhos miravam tudo. Ele ameaçava sair, mas refugava. Um simples arfar mais forte do vento e lá ia ele. Sumia. De repente, lá vem ele. Mansamente. Desconfiado. Mirava seus olhos em todas as direções. Cauteloso, ciente de que a atitude precavida era a garantia de sobrevivência. Num gesto abrupto, a criaturinha se pôs totalmente fora do lar. Ficou parado, imóvel, estático, como uma linda escultura. Até que seus olhos encontraram os meus.

Senti um forte arrepio, uma sensação de superioridade, de dominação, de evolução. Por que cargas d’água aquele ser inferior me olhava? O que se passava pelos seus parcos neurônios? Ele se impôs. Inflou o peito e veio em minha direção. Parou, trêmulo. Andou mais um pouco, e parou novamente. Olhar fixo. Teso. Certeiro. E eu ali, sentado e esperando. A tarde se esvaindo, o sol adormecendo. Uma leve brisa soprou. A criaturinha se assustou e voltou para a borda da toca. Mas não entrou. Ficou lá, estudando o ambiente e olhando para mim. Sentindo-se seguro e dono da situação, ele se afastou em outra direção. Caminhava calmamente, docemente. Apesar de muito pequeno, ínfimo, seu porte era garboso, ostentando uma dignidade impressionante. Ele era um siri, mas não apenas um reles siri. Ele era uma vida que fazia parte do mundo. Ele era parte da história do mundo. Ele não estava ali por um acidente da natureza. Ele era a própria natureza. Uma dócil criatura, diminuta, insignificante. Mas era um filho da natureza, com direitos, deveres. Direito de viver. Dever de caçar, de perpetuar a espécie. Ele tinha o mesmo valor que eu no mundo. Eu com minhas necessidades, ele com as suas. Eu com minhas ansiedades, ele com as suas. Eu com o meu medo de não ser feliz, ele com seu medo de não mais voltar. Mas como ser feliz? Como vencer a batalha se me tropeço na existência de um siri?

Ele se afasta mais ainda, seguro em si, na atitude, no gesto comandado pela razão. O siri é a razão. Eu sou a emoção. Qual de nós dois tem mais chances de perpetuar a espécie? Ele se afasta mais ainda, procurando a umidade do mar. A razão. Simples e serena. Enquanto a emoção se desespera, a razão transparece. São gestos estudados matematicamente. Razão e emoção. Juntos são invencíveis. Eternos, principalmente se dosados na medida certa. O siri e sua terna razão. Eu e minha tumultuada emoção. Terna razão e tumultuada emoção. São água e óleo.

O mar agora acaricia o sol no horizonte longínquo. Os raios solares são escassos. Não há mais aquele belo dourado naquele lugar qualquer. A razão se apercebe do fato. É chegado o momento da volta. Mas eis que a emoção se arvora. Aflora, suplicante. Razão e emoção, frente a frente. Dominação. Entrega. Pavor. Coragem. Batalha. O siri se assusta. Eu, ereto. Olhos nos olhos. Ele lá, estudando o gesto, matematicamente. Eu ali, num tempo qualquer, poderoso, frente àquela insignificante criatura. Foi apenas um piscar de olhos, e minhas mãos dominantes se estenderam. Amistosamente, querendo um contato. A emoção querendo a razão. A razão não querendo a emoção. Ele se foi, num piscar de olhos. Sumiu, na garantia de seu lar. Eu lá, dominado. Sereno. Num tempo e lugar qualquer. A brisa fria, e a criaturinha se foi, feliz, com medo, mas com vida. Até quando? Olhei para o céu e não mais vi gaivotas. Vi estrelas, lindas estrelas. Com a brisa no rosto, num tempo e lugar qualquer, parti. Feliz, com medo, mas com vida. Até quando?

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Panoramio.

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