TEXTO: ROMERO SILVEIRA DE CARVALHO (2020)
Num belo domingo de sol já quase se pondo, Carlota, depois de uma quarentena invernado na marvada, já quase um quimba, passou 2 dias na padiola recuperando as barbatanas do fígado. Depois da panelada de escaldado com ovos crus, preparado pacienciosamente pela santa mãe D. Ozorinda, se permite um demorado banho quente, se barbeia e, como num ritual, após o creme de barbear BOZZANO, se encharca com a loção ACQUA VELVA LIFE BLUE BOZZANO; brilhantina GLOSTORA na farta e negra cabeleira; enverga o impecável terno de linho branco, engomado ainda de manhã pela prodigiosa genitora; a camisa VOLTA AO MUNDO azul céu, salientando os belos e fatais olhos azuis. Abre a porta, contempla a tarde, ganha a rua aquele monumento roliudiano decadente. Sentindo-se como fênix ao ressurgir, ensaia os passos triunfais em direção à Matriz para a missa das 18h, a seguir, a tradicional sessão de cinema no Cine Garza ou Riviera e depois, o vaivém… Depois… tudo pode acontecer, inclusive, nada. (Os capetas batizados estão a postos e espreitam). “Lá vem o Carlota”, alguém dá a senha.
Carlota, todo ancho e triunfante, enceta a sua caminhada de cabeça erguida, olhando desdenhosamente para os lados, como que avaliando sua performance e se dá por contente. Caminha ao longo do muro já próximo à esquina da Rua Olégario Maciel, quando!… Indescritível a cena e impublicáveis os impropérios vociferados a plenos pulmões e aos borbotões pelo Carlota. Em toda a vizinhança as gentes se esticavam e estatelavam os olhos esbugalhados e incrédulos. Na rua toda, um silêncio sepulcral. Ninguém se lembra como Carlota entrou em casa e o que aconteceu depois. Só tarde da noite, quando não havia mais sinal de vida, furtivamente e despistando e vigiando, recolhemos a prova material do crime: Uma lata, dessas de leite Ninho, pendurada em cima do muro e amarrada por uma linha de costura, acionada do outro lado da rua, dera um caudaloso banho de mijo no nosso Rock Hudson ultrajado.
Carlota era filho de tradicional família de Patos, os Tomaz de Magalhães, famosos pelo exercício da advocacia como Alberto Tomaz de Magalhães e Rafael Tomaz de Magalhães, seu irmão mais novo. D. Ozorinda, sua mãe, desde que ficou viúva, nunca mais se desfez do luto. Moravam na Rua Tiradentes, ao lado da casa do João Silveira, do Cartório e em frente à do Sr. Elizeu, pai do Zé do Elizeu, seu maior parceiro de copo e de cruz.
Carlota, que eu saiba, nunca se casou, mas costumava contar de alguns filhos que tinha com mulheres da zona boêmia. Nessa época, não tinha mais de 50 anos, que denunciavam bem mais, pelo estrago provocado pela bebida em excesso. Em que pese isso, era extremamente vaidoso, quase metido a galã, com os olhos azuis, contava muita façanha, quase sempre suspeita. Costumava fazer dupla ou trinca com Zé do Elizeu e o Panca (outra legenda daquela época).
* Foto: descubrenombres.com, meramente ilustrativa.