No Censo de 1991¹, dois jovens recenseadores chegaram à residência do Sr. Antônio no Bairro Vila Garcia para a notação e a recolha de dados. Setentão, mais conhecido como Seu Tonho, trabalhou nas fazendas que outrora existiram morro acima e além, conseguindo na árdua labuta criar os oito filhos com dignidade, juntamente com a esposa Matilde. Homem deveras sistemático, das antigas, que danava com filhos e netos quando estes não lhe pediam bênção.
Dos dois recenseadores, na faixa dos 25 anos, um era constrito e se apegava unicamente ao objetivo da visita, enquanto o outro tinha uma caída para o deboche. E foi este que, ao invés de se concentrar no que tinha a fazer naquele imóvel, perscrutou de cabo a rabo o ambiente onde estava. Foi então que reparou com curiosidade em três quadros numa das paredes da módica sala de estar, daqueles típicos dos idos tempos, pintados por mãos hábeis: um homem, uma mulher e uma mula. Sim, uma mula, pois era também típico nos idos tempos a homenagem ao animal de muita serventia, e a mula do Seu Tonho foi quem lhe levava e trazia das lidas diárias.
Terminada a coleta de dados, nas despedidas, o que tinha uma queda para o deboche perguntou, se referindo aos quadros:
– Sr. Antônio, quem são estes dois?
Seu Tonho, sensivelmente emocionado, explicou até além da conta que era o seu pai e sua mãe, que fizeram tudo para criar a família com dignidade e que, se hoje a sua família também é digna de respeito na cidade, tudo se devia aos ensinamentos que recebera dos dois e os transferiu aos filhos. Imediatamente surgiu no rosto do jovem um sorriso sarcástico. Ele chegou bem em frente ao quadro da mula e resolveu zombar do experiente e humilde homem, perguntando:
– E esse aqui, Sr. Tonho, qual o grau de parentesco com aqueles dois?
O idoso era manhoso, tinhoso, trabalhador desde os dez anos de idade e sabedor profundo das maledicências daquela juventude. Enquanto o outro jovem fez cara de total desagrado pela pergunta deseducada e totalmente fora de propósito do colega, Seu Tonho não arrepiou nem o cabelo do relógio. Vislumbrou-se em seu rosto um sorriso sereno, cintilante e avassalador. Encarou o jovem e bateu o martelo:
– Não, seu moço, isso aí não é um quadro, é um espelho!
* 1: Os Censos são feitos, regularmente, de dez em dez anos (…1960, 1970, 1980…). Dificuldades para contratar os recenseadores provocaram atraso de um ano na realização do Censo de 1990. Mas a divulgação dos dados ocorreu em tempo até então recorde: dois anos após a coleta.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Montagem de Eitel Teixeira Dannemann sobre foto publicada em 28/02/2013 com o título “Prefeitura em 1916”.