Lá vinha eu rua abaixo, comendo minhas pipoquinhas, quando um senhor magro e miúdo, de colarinho abotoado (embora sem paletó) e guarda-chuva pendurado no braço (embora não chovesse) me abordou, com um jeito desusadamente cerimonioso: “Estou falando com o jornalista Oswaldo Amorim”? Paro, limpo o farelinho de pipoca do canto da boca com as costas da mão e respondo: “Em pessoa”.
No que eu me identifico, o empertigado senhor disse, olhando-me firme nos olhos: “Soube que o Senhor quer transformar o campo do Mamoré numa praça”. Minha curiosidade aumenta a cada segundo. Se minha vaidade me acena com um elogio, meu bom senso me prepara para a crítica.
Não deu outra coisa: o empertigado senhor emendou rápido e duro: “Não gostei de sua idéia”. Pus-me em guarda e adotei um tom apaziguador: “É um direito seu”. Em vão, pois o homenzinho embalou: “O Sr. fique sabendo que o Mamoré é um patrimônio da cidade, ouviu?” – disse com raiva, com o dedo espetado no ar, num gesto teatral.
Domino meu espanto e respondo, tentando acalmá-lo: “De pleno acordo, de pleno acordo”. Mas, em vez de acalmá-lo parece o enfureci ainda mais: agitando nervosamente o guarda-chuva com a mão direita ele quase vocifera: “O Sr. diz isso da boca para fora, entendeu? Eu sei muito bem que o Sr. é URT desde criancinha. Era lá que jogava seu irmão Hélio Amorim, que virou dodói da torcida. Foi lá que te botaram o apelido de Motorzinho, por causa de sua correria nos treinos. É isso mesmo: Mo-tor-zi-nho” – disse, escandindo as silabas, para arrematar inflamado, depois: “Eu sei de tudo. O Sr. é um uerretense doente”.
Continuo tentando acamá-lo, falando com serenidade: “Sempre fui da U.R.T., não nego, mas isto não quer dizer que eu seja contra o Mamoré”.
O homenzinho volta à carga: “Mas o Sr. quer acabar com o Mamoré!” Respondo com incontida veemência: “O Sr. está redondamente enganado. Não quero acabar com o Mamoré, quero apenas que ali surja uma bela praça, para humanizar e clarear uma região sufocada por tantos becos”.
Sem se dar por satisfeito, o homenzinho rebate: “E isso não vai acabar com o Mamoré?” Respondo firme: “De jeito nenhum. Quero a praça, mas não a morte do Mamoré. Pela cessão de seu campo atual, o Mamoré poderia receber um terreno muito maior, na periferia da cidade, num ponto a escolher, onde pudesse fazer um novo campo e também quadras de esportes, piscinas e, até mesmo, uma boa sede social. Essa é a minha proposta. Esta é a minha intenção”.
O homenzinho ficou desconcertado, sem o que dizer, aparentemente rendido pelos meus argumentos. “Opa, acho que estou ganhando a parada” – pensei com meu saquinho de pipocas. E animado pela perspectiva, tratei de dar o xeque-mate: “A troca é boa para a cidade, que iria ganhar uma praça numa área tão habitada e ao mesmo tempo tão fechada; e é boa para o Mamoré, que num terreno mais amplo e adequado – pode iniciar a arrancada para seu soerguimento. E até para tornar-se ainda e mais importante do que foi no passado”.
O homenzinho me fita com curiosidade, como que procurando certificar-se da minha sinceridade. “Acho que ganhei a parada”, pensei contente. Foi aí que o homenzinho, talvez convencido, mas sem querer dar o braço a torcer, saiu-se com esta: “Está bem, mas por que o Sr. não tenta fazer uma praça também no Campo da URT, heim?” – disse em tom provocativo e com um brilho nos olhos. E no que disse, afastou-se rápido, feliz com a própria saída e sem querer ouvir mais nada.
* Fonte: Texto publicado com o título “Mamorimbondo”na edição de abril de 1977 do jornal Cá Entre Nós, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do Unipam.
* Foto: Gartic.uol.com, meramente ilustrativa.