TEXTO: MARIA ESTHER MACIEL DE OLIVEIRA (1982)
O caramanchão ficava bem no centro da praça dos Boiadeiros. Grande, rodeado de florzinhas cor-de-rosa, embriagado no cheiro matreiro da cidade sertaneja e no perfume doce das trepadeiras.
Todos os dias, quase de madrugada, os varredores da Prefeitura chegavam para recolher as folhas ressequidas do chão enxadrezado da pracinha, e ele, o caramanchão, sorria num bom-dia, como se despertasse do sono cor-se-rosa de suas flores. E amanhecia, abraçando a infância de um tempo, em que ainda havia jogo da amarelinha e queimada na rua.
Passavam todos pelo caramanchão. As beatas sempre o transpunham ao sair ranzinzamente de suas casas para a missa das seis. A das Graças, empregada de Dona Alice, também atravessava ali, cantarolando, com uma tigela debaixo do braço, em direção ao Açougue do Povo.
Para o caramanchão iam todos os dias, os menininhos do Córrego do Monjolo. Uns, vendendo pirulitos, puxa-puxa, e outros, barrigudinhos de verme, embalando-se na rede de flores e sentindo a leveza do vento nos rostinhos de terra e catarro. E molecavam, como se deglutissem sonhos no almoço que certamente não teriam.
Bernezina, a velha preta dos fundos da casa do Lucas, também aparecia toda manhã na praça. O corpo, a bengala sustentava friamente.
Os olhos eram magros, mas sabiam reparar os pardais que bicavam as flores cor-de-rosa e chorar pelo falecido Antero que caíra do cavalo num ataque de coração, lá pelas bandas de Presidente Olegário.
O caramanchão assistia a tudo. Tão menino quanto os meninos daquele tempo. Tão boiadeiro quanto a praça.
As meninas, amontoadas num único banco despencado, contavam casos, traçavam planos e planos para derrotar os garotos implicantes. Algumas, agachadas no chão, jogavam baliza com pedrinhas catadas lá embaixo no “Corgo”, aquele lugar enlameado onde moravam os vendedores de pirulito, puxa-puxa. Ana Maria, como sempre, retraída atrás das pilastras do caramanchão, escondia-se do pai que a proibia de sair de casa todos os dias. A Marlene, depois de uma tentativa frustrada de roubar uvas na casa do Geraldo Baiano, ria dos xingatórios do velho sistemático e se lambuzava de goiaba, daquelas amarelinhas que só no quintal de dona Maria existiam. A Guega, com um cabelão de fazer gosto, continuava atiçando os meninos que jogavam peladinha no campinho da praça. Menina custosa, a Guega.
A Lurde doida, de vez em quando, descia a praça, com o sutiã cheio de retalhos, meias, lenços e notas. Todo mundo gritava quando ela apontava. Uma coitada, a Lurde. Cabelos desgrenhados, pernas torcidas. Gostava de carregar na mão uma vara de marmelo para bater naqueles meninos encapetados que zombavam de seu sutiã recheado. Passava resmungando, blasfemando, falando em chamar soldado para prender os que dela chacoteavam. Dava umas três voltas pelo caramanchão e ia embora. Um alívio para os olhinhos de medo das crianças. De repente voltava, só para assustar. Mas todos já estavam acostumados com essas maluquices da Lurde, apesar de que ainda a temiam.
Mas o melhor mesmo para Marcelo, Pitiu, Lucas, Piriá, Marcinho, Papagaio e Natal, não era Lurde nem Bernezina. Era a mulata Anastácia que atravessava o caramanchão com os peitos pulando do decote exagerado e as ancas dançando sobre os passos sorrateiros. Os meninos corriam atrás daqueles rebolados, puxando a saia da moça, custando a conter o tesão que tomava conta dos corpinhos adolescentes. Nem ligava, a Anastácia. Fazia de conta que não ouvia os suspiros daqueles moleques sem-vergonha e nem os cochichos das madames fofoqueiras.
O caramanchão impassível, sempre sorrindo. Observava o tempo, a terra, as crianças, os picolezeiros, a praça. Abarcava com os braços todo um dia-a-dia, ilustrava o crescimento da cidade e enraizava beleza nos olhos das crianças daquele tempo de amarelinhas. Presenciou petecas, queimadas, cirandas, balizas, peladinhas, joelhos esfolados, bicicletas, troles, pés no chão, piolhos, fitas, beijos, namorados, palhaços, loucos, mendigos, pirralhos, picolés de groselha, bate-begues, bambolês, bolinhas de gude, amor, ilusão, boiadeiros. Presenciou e carregou tudo para a cova em que o enterraram.
Hoje, no lugar do caramanchão cor-de-rosa, na praça que não é mais dos boiadeiros, existe um “trailler” de sanduíches, rodeado de mesas da Brahma e salpicado de emblemas da Coca-Cola.
* Fonte: Texto publicado na coluna de Agenor Gonzaga, no n.º 41 da revista A Debulha de 15 de fevereiro de 1982, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do Unipam.
* Foto: construindodecor.com.br, meramente ilustrativa.