Cachorros parecem quase que biologicamente incapazes de esconder seus sentimentos: o abanar dos rabos, tremedeiras, pequenos sons de excitação ou descontentamento entregam se o animal está com raiva, feliz, triste ou ansioso. Gatos também têm uma linguagem corporal sofisticada: o humor deles pode ser inferido pelo movimento dos rabos, os pelos ouriçados, a posição das orelhas e dos bigodes. O ronronar, por exemplo, normalmente (mas nem sempre) indica contentamento. Observar o comportamento desses bichos costuma ser um método seguro para detectar se eles estão num momento sociável ou se é melhor deixá-los em paz.
Mas, enquanto podemos ter certa segurança dos laços de um cachorro conosco, gatos ainda gozam de uma imagem relativamente negativa, embora já sejam usados como animais domésticos há milhares de anos. A independência deles, que muitos enxergam como bônus, é frequentemente associada a egoísmo e individualismo. Os detratores dos felinos argumentam que eles só mostram afeição para obter comida. Donos de gatos replicam que nada disso é verdade e que os seus laços com o animal são tão fortes quanto a conexão entre cachorros e seus donos. Por que, então, a imagem de que os gatos não são bichos amigáveis permanece?
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2013 pelo IBGE, existiam no Brasil 22 milhões de gatos domésticos, representando 17,5% dos domicílios. Uma pista sobre como a imagem dos gatos se consolidou entre nós vem da forma como foram domesticados. Foi um processo muito mais gradual que aquele dos cachorros. Os primeiros gatos domesticados começaram a aparecer nos vilarejos neolíticos do Oriente Médio há cerca de 10 mil anos. Eles não dependiam dos humanos para comida − eram encorajados a buscar alimentos por si próprios e a armazenar a comida em locais seguros de ratos e outros animais. Portanto, nosso relacionamento com gatos já começou com a imposição de um distanciamento maior que no caso dos cães. Desde o início da domesticação dos cachorros, eles foram usados para ajudar os humanos a caçar e compartilhavam os resultados da empreitada com seus donos. Portanto, diferentemente dos gatos, os cães foram ensinados desde o princípio da domesticação a depender dos homens para comer e a participar de atividades conjuntas.
O processo mais recente de domesticação de felinos, que implica em torná-los dependentes de nós para alimentação, não retirou deles todas as suas características selvagens. “Há uma desinformação dos humanos em relação à espécie”, diz Karen Hiestand, veterinária integrante da ONG International Cat Care. “Cães e humanos são muito similares e convivem há muito tempo. De certa maneira, houve uma coevolução (quando há a evolução simultânea de duas ou mais espécies). Com gatos, (essa convivência) é mais recente. Eles vêm de um ancestral solitário que não era uma espécie social”, explica. O gato selvagem africano Felis lybica, que adaptamos como gato doméstico, tende ter a uma vida solitária e a se relacionar com outro animal da mesma espécie apenas para procriar. “Gatos são um dos únicos animais antissociais que foram domesticados. Os outros animais que domesticamos formam laços sociais com outros membros da mesma espécie”, ressalta Hiestand. A velocidade da vida moderna, que deixa pouco tempo para que possamos cuidar de diferentes afazeres e de outros animais, tem favorecido a popularidade dos gatos como bichos domésticos. “Porque eles são tão autossuficientes e capazes de tomar conta de si mesmos, gatos estão se tornando cada vez mais populares. Ao mesmo tempo, porém, os humanos esperam que gatos ajam como nós e como cachorros em vários aspectos. Mas eles não são assim”.
Pesquisas sobre as emoções e a sociabilidade dos gatos estão muito menos desenvolvidas que aquelas que versam sobre cachorros, embora tenham ganhado espaço nos últimos tempos. Alguns estudos já mostram que a sociabilidade dos gatos em relação a humanos é um espectro complicado. “A sociabilidade varia muito conforme a genética e, em parte, advém da experiência de cada bicho nas suas primeiras seis ou oito semanas. Se tiverem experiências positivas no começo da vida, provavelmente vão gostar mais de humanos e viver perto de nós.” Mesmo os gatos domesticados ou que convivem em centros urbanos e vilas povoadas integram um amplo espectro. Os gatos ariscos de rua costumam se esconder e fugir de humanos, se comportando mais como seus ancestrais selvagens. Mas, em locais como o Mediterrâneo e o Japão, colônias de “comunidades de gatos” povoam vilas de pescadores e socializam com qualquer pessoa que se interesse em alimentá-los. Em Istambul, capital da Turquia, gatos de rua são alimentados por locais e se tornaram parte da identidade da cidade, tornando-se inclusive personagens principais de um documentário. Há ainda os gatos que vivem nas casas, mas mesmo dentre este grupo há grandes variações. Alguns mantêm uma relativa distância, enquanto outros parecem gostar muito da companhia humana.
Assim como fazemos com cachorros, observar a linguagem corporal dos gatos pode nos ajudar a compreender melhor o animal. O corpo dos felinos fala mais do que os sons que eles emitem. “Mas costuma ser mais difícil para as pessoas ler a linguagem corporal dos gatos que a dos cães”, diz Kristyn Vitale, que faz um doutorado na Universidade de Oregon State sobre comportamento felino. E dificuldade não é, necessariamente, culpa do gato. Um aspecto vital pode ter permitido aos cachorros desbancar os gatos na conquista pela nossa afeição. Estudo da Universidade de Portsmouth revelou que cachorros aprenderam a mimetizar expressões de crianças, atraindo a atenção e a simpatia de seus donos. Essa mudança se revela na capacidade que os cachorros adquiriram de desenvolver um músculo na área da sobrancelha. E essa característica não existia nos ancestrais lobos dos cachorros. O “olhar de filhote” é um truque evolutivo que fortaleceu a conexão entre cães e humanos. A má notícia para os gatos é que eles não possuem esse músculo. Portanto, o olhar do gato pode parecer frio e não amigável.
Mas o olhar com piscadas lentas que o seu gato te lança de perto ou do lado oposto da sala é a forma que ele tem de expressar amor. Até o fato de virar a cabeça para o lado pode ser o oposto de desdém— é um sinal de que o animal está relaxado. Numa pesquisa conduzida por Vitale, gatos e cachorros são deixados sozinhos numa sala, com o dono retornando de repente algum tempo depois. “Uma coisa interessante é que a os gatos que se sentiam seguros com os donos o cumprimentavam e voltavam a explorar o ambiente. E, em intervalos curtos de tempo, voltavam para os donos. Os cães agiram de maneira similar”, diz Vitale. “Se o cachorro corre pela sala, brinca com os brinquedos e, ocasionalmente, retorna ao dono, isso não costuma nos preocupar.” Pesquisadores chamam isso de “conexão segura”, ou seja, uma aparente calma diante do retorno do dono que sugere uma forte conexão emocional.
“A expectativa dos humanos impacta no comportamento dos animais”, diz Vitale. Ao tentar forçar gatos a se comportar mais como cachorros, inundando o animal de atenção, o humano o está pressionando a se afastar de seu comportamento natural. Hiestand diz que nossa inabilidade histórica de perceber o temperamento dos gatos como diferente do de cachorros é parte do problema. Mesmo especialistas com anos de treinamento não são imunes a esse erro. “Eu fui a uma conferência em 2007 e me senti uma completa idiota”, diz ela. “Havia várias informações básicas sobre gatos que eu não conhecia, como o fato de que eles gostam que os recipientes de água e comida fiquem em locais diferentes. Todas essas pesquisas são bem recentes, mas quando você tem a humildade de assumir que o que você pensava saber sobre os gatos estava errado, você começa a aprender muita coisa interessante.”
Preste atenção na forma como gatos se esfregam nos donos. Isso costumava ser interpretado como uma maneira de marcar território, assim como gatos selvagens fazem em árvores e outros marcos naturais. Na realidade, quando os felinos domesticados fazem isso com pessoas, é um sinal de afiliação— o gato está transferindo seu cheiro para a sua pele, ao mesmo tempo em que atrai o seu cheiro para o pelo dele. Isso é o que felinos fazem com outros gatos que consideram aliados. É uma maneira de criar um “cheiro comum”, que distingue amigos de rivais. E há uma questão chave, aponta Hiestand: gatos relaxados e tranquilos tendem a querer fazer amigos. “Eles querem sua comida, seu local de dormir e sua água nos lugares certos. Quando conseguem isso, abrem espaço para explorar laços sociais”. Portanto, da próxima vez que você chegar em casa e encontrar o gato silenciosamente te olhando do sofá ou preguiçosamente bocejando enquanto caminha pelo corredor, não fique desapontado. Da sua maneira silenciosa, ele está demonstrando felicidade em te ver.
* Fonte: www.bbc.com.
* Foto: clicksergipe.com.br.