O seguinte conto está baseado em episódio da vida real, muito embora os protagonistas e o local onde se desenrolaram os fatos sejam do domínio da pura ficção.
Certa feita, levamos mantimentos e agasalhos para passarmos a noite na praia do Provisório, seis quilômetros rio abaixo, Waldê, José Ramos, Jarbas, Tião Olívio, Jair, Fulô e eu.
À saída da Beira da Lagoa, junto ao último boteco do bairro, um conhecido acercou-se da perua e perguntou:
– Vocês vão, para dormir?
– Não, responde o Jair, nós vamos é para pescar…
Seguimos viagem na alegria de sempre. Pousamos lá mesmo, na praia. Lua boa. A turma estêve pescando até lá pelas tantas. Alguns foram caçar. Outros ficaram a acender o fogo para assar linguiça. Não haviam esquecido de trazer tomate, cebola, sal e a indispensável caninha Segura o Tombo, que deixaram enterrada, à beira da água, para que não se esquentasse.
Prosa vai, prosa vem, de quando em quando, um naco de linguiça e um gole de caninha, e logo o assunto da conversa derivou para os casos de assombração.
José Ramos, começou a contar que o Provisório, onde estávamos, era assombrado. A fazenda próxima foi, há muitos anos, palco de uma tragédia entre visinhos, por questões de limites, de tudo resultando o assassinato de um dêles; era comum ouvir-se lá do alto do morro, uma voz rouca, que à meia noite, perguntava:
– Onde é a divisa?
E, em seguida, se ouvia um berro de bode. E que, em dada ocasião, Vico e o Antonio Quiabo estavam pescando alí, quando perceberam a voz, acompanhada do berro. Que o Quiabo caíra na infelicidade de imitar o que tinha ouvido.
Foi senão quando, de repente, um bode prêto, enorme, com olhos de brasa, veio sair no meio dêles, e dando um estouro macabro, desapareceu, a deixar um acre cheiro de enxofre. Eles fugiram, deixando varas, capangas e tudo o mais no barranco e foram tomar fôlego na cidade.
A noite ia bem alta. Jair, o único que continuava a pescar, lá na ponta da praia, veio se disfarçando, até se aproximar do pouso. Chegou sério, comeu um pedaço de linguiça, tomou um gole de pinga e perguntou:
– Como é mesmo, José Ramos, aquela história do bode? Pois olhe, eu berro, não tenho mêdo de berrar…
– Pois então, berre, insistiram todos.
– Bem, eu não berro agora, porque não estou com vontade de berrar, mas dizer que eu berro, berro. O que tem isso?
– Qual nada, disseram. Você está é com muito mêdo.
– Querem saber de uma coisa? Só porque vocês estão insistindo, é que não berro mesmo.
A pouco e pouco, foi a turma tôda amolecendo. A conversa foi esfriando, e instantes depois estavam todos dormindo nas enxergas, à beira do fogo.
Lá pelas cinco da manhã, alguém já estava coando o cafézinho e o Jair continuava a puxar o ronco. De chofre, abriu o canto do olho, notou que a barra do dia estava começando a aparecer, levantou-se, deu uma espreguiçada boa e abrindo os braços em frente aos que estavam despertos gritou com tôdas as fôrças dos pulmões:
– Bé!… bé!…. bé! e bé!… Estão vendo? Berro ou não berro?
* Fonte: Texto publicado na edição de 24 de maio de 1969 do Jornal dos Municípios, assinado “M.M.R. – São Paulo”, do arquivo do Laboratório de História do Unipam.
* Foto: Muraljoia.com.