UMA CASINHA

Postado por e arquivado em ARTES, LITERATURA, PAULO NUNES.

Também tive um sonho.

Era uma casa pequena, que eu achava bonita, pois era toda enfeitada de chita e de breves lembranças que pessoas queridas ali deixavam, e nela eu morava.

Não era pequena para uma, duas ou mesmo três ou quatro pessoas morarem, para isso era ampla, confortável, com boa circulação de luz e de ar. (Nem era uma casa nova, mas nunca fui de admirar casas e cidades muito novas.) Mas era pequena para a multidão de músicos, musicistas, cantoras, cantores e produtores culturais que ali passavam.

Uma casa que nunca se fechava, não sei explicar bem como (ora, era um sonho), ou em que os ali chegados tinham suas chaves.

E vinham às dezenas, às centenas, num turbilhão, de todos os cantos da cidade enorme e do país continental e diverso em que esta cidade se situava, mesmo de muitas partes do planeta de que este país fazia parte.

A maioria dominava com grande mestria as suas artes, e muitos outros artistas os acompanhavam, gente das palavras, do teatro, da dança, das artes plásticas, do cinema, da fotografia (numa modalidade nova, que registra sonhos), do pensamento, da religião ou apenas da vida, que sempre pede casa e acolhimento.

Gente de todas as cores, vestes, corpos, gêneros, falas, classes sociais, que tinha em comum desejos e planos bons para a cidade e para o mundo, resgatando a dimensão (quase) perdida do encontro, inventando um ambiente de gentileza e irmandade em que arte, conhecimento, às vezes sabedoria, mas sempre vinho e os mais urgentes e sinceros afetos fluíam naturalmente, num contínuo momento de surpresa e emoção.

E assim juntos, como num terreiro, como nos velhos tempos numa pequena praça de uma cidadezinha do interior, como numa comunidade rural, como numa tribo, atravessávamos fogueiras, coretos, salões, saraus, apresentações, ensaios, reuniões, festas, folguedos, brincadeiras, almoços, jantares, cafés, vigílias, alguns inevitáveis momentos de tristeza e derrota, cultos, rituais e, sempre, visitas surpresas, outras combinadas.

Aquela minha estranha e especial morada parecia ter também a função de ser uma escola – nela voltávamos todos a ser crianças, e esta, sim, é uma redação escolar -, pois os sons que ali nunca cessavam, os gestos, poemas e conversas daquelas centenas de pessoas tão diferentes entre si, tão ricas de experiências e exemplos, iam cotidianamente educando-nos.

Além disso, também por onírico capricho, a tal casa, pequena e infinita, possuía uma biblioteca inacreditável: eram milhares de livros excelentes (sim, como cabiam ali?!), boa parte raros, contendo sobretudo a Poesia e a Sabedoria de todas as épocas e lugares, somados a um sem-número de discos da melhor música. E no meio de tudo isso e de tanta gente, uma gata, bela, muito mansa, não percebia que estava em um sonho e existia.

Outro capricho da imaginação: certamente por serem essenciais, apareciam naquela morada, num encanto, artistas da cozinha, vindos de todos os quadrantes, preenchendo ainda mais o espaço e os sentidos com panelas enormes e inesgotáveis de uma comida simples porém honesta, que todos elogiavam (naquele sonho maluco, imaginem, a comida era de graça…).

Então, naquela casinha, vivendo uma vida que se queria mais plena e verdadeira, eu não me sentia só – nós não nos sentíamos sós, e tecíamos bravamente planos (sonhos!) para um mundo melhor. O fato era que não fazíamos muito, mas sofríamos a agradável sensação do bom exemplo.

Mudar o mundo, mesmo nas redações escolares, nunca foi fácil, e de repente a realidade, com seu amontoado de contas vencidas e problemas, me acordou. Mas desde então tenho vivido com a estranha certeza de ser um milionário.

NOTA: Palavras de Paulo Nunes: Este texto escrevi-o em 2019 para encerrar uma palestra que dei na escola de formação do SESC-SP quando fui falar de produção cultural alternativa.

* Foto: Desenho tela a óleo de Erika, aluna em 2016 da EMEF Gen. Euclides Figueiredo, do Jardim São Francisco, zona oeste de São Paulo, onde, neste ano, Paulo Nunes, Saulo Alves e o Trio José, sob a coordenação da então professora de artes Silvia Martins, trabalharam em todas as salas de aula a Puisia e a vida do Juca da Angélica. Silvia atualmente exerce a chefia do Conselho de Artes Plásticas e Decoração do IJC – Instituto Juca de Cultura.

Compartilhe