Muitos homens entram para a história por causa de seus feitos heroicos, ou literários, ou artísticos ou políticos. Outros, no entanto, pela sua vida popular, pelos seus ditos espirituosos, pelas suas esquisitices. E eles jamais são esquecidos. Pois apesar de muitas vezes nada se escrever sobre eles, vão passando de geração em geração os seus feitos. São mais assuntos de crônica que propriamente de história. No entanto, quando se trata dos hábitos e costumes de uma terra, eles não podem deixar de ser lembrados e mencionados, mesmo que rapidamente. Assim sendo, achamos por bem registrar algumas figuras que ficaram na memória das gerações patenses.
ALEXANDRE CADELA – Um bêbado constante a vagar pelas ruas, xingando quanto nome havia. Ninguém nem mais dava importância aos nomes feios por ele pronunciados. Morreu de beber.
BENTINHO DAS MOÇAS – Era ao contrário de todos, pois amava o trabalho. No entanto, trabalhava apenas onde havia moças. Fazedor de versos, vivia rindo uma risada esquisita, e que o povo achava graça no seu rosto abobalhado.
CHICO CACETE – Era oriundo de Carmo do Paranaíba, de onde já veio adulto. Vivia andando pelas roças como curador e possuía a mania de falar difícil. O seu apelido vem de sua chatura. Intolerável o seu enjoo. De certa feita, o Prefeito Camundinho vinha de Lagoa formosa em seu carro. Tempo de muita chuva e de muito barro naquelas estradas incipientes. Chico, que vinha a pé, o alcançou atolado. Tratou de ajudar o Prefeito, que ele não conhecia, a desatolar o veículo. E enquanto trabalhava, comentava: Está vendo, isto é causa de não ter Prefeito. Camundinho deu corda em Chico e não se identificou. Já desatolado, perguntou ao Chico se ele viria para Patos de minas. Diante da resposta afirmativa, convidou para seguir com ele, o que foi aceito pelo Chico. Mais adiante, atolou novamente. Chico torna a falar mal do Prefeito, por causa de suas estradas. E Camundinho agiu da mesma maneira. Quando chegaram, além da carona, Camundinho deu-lhe 5$000 de gratificação. Neste momento se identificou. E o Chico respondeu simplesmente: Mas num é mesmo?!…
CRISTINA PAPUDA – Não tolerava esse adjetivo. Uma mulherzinha branda, com o papinho sempre oculto debaixo de fofos do decote da blusa. Tomava pó e fungava. Em moça, teve uma filha. A menina, criada por um casal de consideração numa cidade longe, veio a casar-se com um doutor. Cristina vendia brevidades e doces secos postos numa bandeja.
CUBU – Era baixo, moreno, troncudo. Muito asseado e jogador inveterado de Pavuna, usava sempre capote e bengala. Filósofo e irreverente. Amava muito as rodas de bate-papos, onde ouvia bastante antes de falar. Naquela época os bate-papos eram nas casas comerciais, à noite, à luz de possantes lampiões belgas. Seu bate-papo predileto era na loja do Tonho Dias Maciel, onde hoje é a casa da família Zama Alves. Até falava pouco, mas quando usava da palavra era irônico e picante. Uma de suas mais famosas foi a respeito da ida do Major Gote a Paris. Foi o assunto de admiração e comentário de muito tempo nas rodas patenses. E num desses comentários, quando falavam das maravilhas do Rio, das originalidades de Paris, ele apenas comentou: Ora, gente, esse negócio de ir ao Rio, a Paris, é bobagem, o que não se vê aqui nos Patos, não se vê em lugar nenhum do mundo. O que equivalia: aqui em Patos de Minas tudo podia acontecer. Por isso, quando surge algo de mal-entendido, de mal-arranjado, logo se afirma, baseado no seu comentário de quando da viagem do Major Gote a Paris: “Patos é a terra do Cubu”.
CUIABANA – Mendiga, andava esperta e era mentirosa como ninguém. Por onde passava, uma mentira. Muita gente apreciava ouvi-la, pois a sua imaginação não deixava nunca de inventar cada mentira de assustar. Nas suas andanças, pouco parava.
DAVID COLETA – Parecia negro da Costa e era escravo de Antônio Modesto da Silva. Bobo completo, tinha pavor de assombrações. Qualquer ruído na casa, em altas horas da noite,, fazia-o abrir a boca no mundo, acordando a vizinhança. “Sombração!”, berrava ele. Rezava a Salve Rainha num palavreado todo especial, e tinha um ideal que o acompanhou até a morte: possuir “chinelos de cara-de-gato, gravata no pescoço, meia no pé e relógio duma banda”, indumentária dos homens grã-finos da época. Virava uma fera quando assim o chamavam. Coleta era uma preta horrorosa, pobre e coitada, que o povo receitava para ser sua noiva. Era recíproco o ódio. Para ela não havia coisa pior que David ser seu noivo. Com o passar dos tempos, David deu para beber, e, às vezes, dormia na rua. E, na rua, acharam-no morto depois de uma noite de geada.
DR. NOÉ – Mais afeiçoado a cachaça que bode ao milho, nunca dizia que ia tomar um trago ou um aperitivo, mas sim um “relativo”. Baixinho e atarracado, e quando começava as suas arengas, gesticulava desesperadamente, fazendo os gestos largos, abaixando-se às vezes, até quase tocar o solo, enquanto pronunciava uma série de frases desconexas. Nestas ocasiões parecia possuído de uma fúria terrível, mas na verdade era inofensivo. O curioso é que mesmo quando fazia os circunstantes dar barrigadas de riso, Dr. Noé permanecia sério. Dizem que foi a prática do baixo espiritismo que o ensandeceu. Ainda que suas frases nunca fizesse sentido, tinha a pretensão de falar com muito apuro. Dai acrescentar sempre um S às palavras que pronunciava.
EDINHA – Dos mais antigos de que se tem notícia, tinha como animal de companhia um cabrito de nome Cadete. Era muito devota de Nossa Senhora da Abadia, e sobretudo de Nossa Senhora da Abadia do Muquém, em Goiás. Todos os anos se dirigia para lá por ocasião da romaria. Uns dois meses antes partia, a pé, tendo por companheiro apenas o seu fiel animal. Acabada a festa, lá vinha Edinha de volta. Jamais aceitava companhia, por mais que algum romeiro insistisse com ela para integrar-se ao grupo. Desapareceu misteriosamente. Acreditam que tenha sido numa de suas viagens devotas a Muquém. E desapareceu juntamente com seu cabrito.
EMILIANO CANDOCHA – Filho de uma mendiga, gostava de ser intitulado doutor, pois se dizia médico. E como o povo o apreciava receitar! Alguém, para entusiasmá-lo mais ainda, mandou para o Rio o seu nome entre os dos médicos da cidade, e, como tal, daquela metrópole, recebia blocos para receita impressos: Dr. Emiliano Candocha. Era um pobre coitado, bobo, que nem ler sabia. E vivia perambulando pelas ruas com um saco sujo às costas conduzindo bugigangas, apesar de “doutor”.
FERRUGEM – Ora bêbado, ora torcendo-se nas horrendas e dramáticas convulsões de seu mal, passava os dias na faina laboriosa de caça-níqueis, de porta em porta, para ir perder ao vinte-e-um, no fundo das tendinhas do vício no Alto da Várzea. Era persistente e teimoso, descompondo a quem lhe negasse a esmola, e acabava sempre vencendo. Já foi, entretanto, algo na vida: lia e escrevia com desenvoltura, exercendo, por vezes, a profissão de professor da roça. Vitima do alcoolismo, degenerava-se dia a dia. Gostava muito de fazer discursos arrojados. Para conseguir a sua esmola à porta da Matriz, discursava: Se eu tivesse quatrocentos contos eu fazia uma prática nesse largo, meu senhor.
GENERAL – Às vezes o forasteiro estranha quando aquele homem, de botina de goma, roupas humildes, de enxada às costas, passa cantando, a plenos pulmões, uma cantiga sertaneja. Sua desinibição é completa: número de pessoas que possa haver na rua nunca o perturbou. Haja o que houver, ele – o trovador sem luar, sem violão e sem muita voz – segue cantando (bem alto) pelas ruas, sempre caminhando a passos largos. É o General, uma figura inconfundível na nossa paisagem humana. Recebeu este apelido somente porque usava túnicas velhas da polícia e se intitulava General, muitas vezes bêbado e vendendo um bilhete de loteria.
JERÔNIMO BOIADA – Dizia Chamar-se Jerônimo Cunha Sales e gostava de ser chamado de Siô Sales ou Siô Cunha. E ai de quem o apelidasse de Jerônimo Boiada. Morava na cadeia, de onde saia para passear e voltava afirmando sempre: Agora vou para casa. Em algumas épocas, doido varrido e perigoso. Matou um homem porque “o tocano mandô – o tocano, no galho do pai grito, uáuáuá”. Vivia cantando em tom afinado e forte, pelas ruas: Cinturinha fina, cabelo anelado, ôi, ái… das roxas morenas, tô desenganado, ôi, ái… Na beira do São Francisco, a barca nova afundô, quatro pessoas morrero, e uma só se salvô. Vivia juntando cisco nas ruas e xingando nome feio. Conhecia pouca gente cujo nome repetia constantemente: Major Gote… Major Gote.
JOÃO MELECA – O apelido não o agradava absolutamente. Mas o diabo é que ninguém mais se lembra de seu nome verdadeiro¹. Agora, o título de “sineiro-mor” da Catedral de Santo Antônio o fazia babar de satisfação. Quase todas as cidades do Interior tem sua “água da biquinha” que faz o adventista afeiçoar-se à terra. Mas ninguém jamais se lembrou de industrializar esse líquido. E isso é o que João Meleca fazia com a água gostosa, pura e cristalina que brotava ali mesmo num olho d’água existente na Rua dos “Crentes” (descida da Rua Farnese Maciel). Deu-lhe o nome de “Água Pérola” e tinha freguesia certa. Com o passar dos tempos, João Meleca fechou a sua indústria conduzida em vasilhame muito limpo e empurrado em seu carro de mão, de cor azul, com a propaganda: Use a puríssima “Água Pérola”. Orgulhava-se de ser guarda-noturno do DER, impondo-se garbosamente em sua pequena estatura, dentro do uniforme.
JOSÉ PRATES – Pedreiro e pintor, muito espirituoso e com resposta oportuna para o momento. Conta-se que certa vez, numa das reformas realizadas na antiga Matriz, cantava uma melodia carnavalesca, bem movimentada. E o ritmo era seguido pela brocha na parede. Monsenhor Fleury, chegando para ver o andamento do trabalho encontrou-o cantando o samba. Reprimiu-o: Ora, José Prates, você cantando uma música dentro da Igreja… Isto é uma irreverência! José Prates não falou nada, simplesmente mudou a canção. Passou para o hino religioso “Os Anjos, todos os Anjos”. Consequentemente o serviço se tornou moroso, pois a brocha acompanhava a lentidão da música. Diante disso, Monsenhor apenas lhe disse: Não José Prates, pode continuar cantando o seu samba.
MARIA GARRINCHA – Era uma mulata escura, baixa e grossa, olhos esbugalhados, beiçuda, gengivas vermelhas e desdentadas. Carpideira-mor, não perdia velórios. Falecesse alguém na cidade, pobre ou rico, apresentava-se ela, na sua choradeira. Quantas vezes a lamuriar-se em casa de um morto, pessoa beirando os 90 anos, assim exclamava: Tudo que é bom neste mundo atura pouco. Morava na Várzea, na companhia da irmã Rita Garrincha, uma sósia em menores proporções, sendo a Rita inteiramente mentecapta.
MATRACA – Era um homem que atraia multidão para um bate-papo. Gordo, bonachão e muito espirituoso, dono de celebrado café no Cine Magalhães, onde se formavam as rodinhas para tomar o chocolate nos grandes intervalos da projeção. E lá, sobretudo, é que se divertiam ouvindo o Matraca enquanto servia aos fregueses contando as suas piadas, possuidoras de graça somente em sua boca e no seu jeito de contá-las. Foi também o dono do primeiro salão de barbeiro e barbeava sobretudo os importantes.
MELO VIANA – Apareceu sem ninguém saber de onde veio. Foi na época do governo Melo Viana, e gostava que o denominassem assim, jamais revelando o seu nome próprio. Vivia com um papagaio às costas. Um tipo bastante exótico, pela sua brancura e magreza. Inteligente, sabia de tudo, dando notícia de muita coisa. A sua vida era viajar, explorando todo mundo.
PAULINO – Detestava quando lhe gritavam: cucho, cucho, me dá um leitão! Isto para ele era uma morte. Vivia correndo atrás de quem quer que fosse, para bater, quando lhe diziam aquelas odiendas palavras.
PULA-PIRU – Manco de uma perna, o que o faz andar dando quase um pulinho a cada passo, vive de caridade pública, e se alguém grita “pula-piru” fica furioso e despeja todas as incontinências de seu temperamento. Quanto ao defeito da perna, diz que foi desastre de avião. E aos que lhe perguntam como foi, responde: Eu ia andando olhando um avião no céu, e de repente caí num buraco.
TITA – Não há quem não a conheça em Patos de Minas. É preta, gorda e sempre alegre. Fala por paus e por pedras e é fã incondicional do Binga e da UDN. Na época de eleições gostava de fazer versinhos para elogiar o Binga e menosprezar os candidatos do PSD. Quando Binga tomou posse fez questão de dançar com ele no baile da vitória. Mexer com ela não é bom negócio, porque tem a língua destravada e costuma retrucar com respostas rápidas e inesperadas que têm deixado muita gente boa com a “cara no chão”. Está sempre presente em todo momento de alegria e de dor de qualquer família. Não perde nenhum casamento, sempre bem arrumada, não dispensando a sua velha bolsa; também não falta em nenhum velório, passando até toda a noite na casa do defunto. A sua figura está presente em todos os atos importantes da terra. Vivia empurrando o seu célebre carrinho de mão, conduzindo lavagem para seus porcos e parando na rua, a todo instante, para conversar com todos que passavam. Tornou-se até alusão de um dito em nosso meio. Quando uma coisa não é verdadeira e a gente duvida, então se fala: Não, é impressão da Tita!
ZÉ ALBINO – Seu vozeirão grosso e cavernoso, sua risada estrepitosa e prolongada eram familiares a todos. Onde parava, formava-se logo um grupo para ouvir os casos engraçados que costumava contar ou apenas para vê-lo e ouvir-lhe a famosa gargalhada que, como a voz, era também grossa e cavernosa. Vinda do fundo do peito, e quando se pensava que ele estava terminando, redobrava de rir. Contam-se dele dezenas de histórias hilariantes, que correm de boca em boca. Orgulhava-se de haver trabalhado na construção da ponte internacional de Pasos de los Libres e gostava muito de narrar as suas viagens por outras paragens. Na mocidade foi excelente carpinteiro. Depois entregou-se à bebida, para transformar-se num escravo da cachaça. Sabia algumas poesias de cor e gostava de arrotar cultura alardeando falsa intimidade com poetas e escritores famosos, sempre os tratando pelo primeiro nome ou apenas um sobrenome. Apreciava muito o Guerra Junqueira (O Guerra, como ele o chamava), mas quando lhe perguntavam a sua opinião sobre o autor de “O Navio Negreiro”, respondia invariavelmente: Não gosto do Alves, não. Ele me humilha muito! Era muito espirituoso. Um dia lhe contaram que outro alcoólatra empedernido havia deixado de beber, ao que prontamente retrucou: Melhor assim, sobra mais pinga prá nós!².
INDICAÇÕES DOS LEITORES
– Lembro-me do DECO MORENO, baixo, magrinho, andava sempre de paletó e cheio de anéis. Vivia pelas ruas e costumava dormir embaixo da escada de entrada da casa do Binga. (Rovena Maria Mattos)
– Tinha também o PICOLÉ DE JILÓ, vendedor de picolé perto do Marcolino e do Fórum, ficava uma onça e jogava pedra quando a meninada perguntava se ele tinha picolé de jiló pra vender. (Rovena Maria Mattos)
– Eu me lembro bem do ZÉ PRATES; sempre à tardinha, vinha bater papo de pescarias com meu tio Modesto de Mello Ribeiro, na varanda da minha avó; conversavam agachados, encostados na parede. (João Lucas Ribeiro Borges)
– JOAQUIM FUBÁ, CARLOTA (bebia 24 horas), ZIQUITA, PANCA e porque não o WILSON AMORIM e seu assovio, enquanto dirigia a sua Belina (acho que era). (Ramon Mattos)
– Tinha a BATATINHA que vinha todo sábado pedir a ajuda da semana, era uma senhora bem gordinha das pernas grossas, vem daí o apelido. (Rovena Maria Mattos)
– E o ZÉ CAFÉ, lembra? Na porta da D. Margarida todo dia, eu morria de medo dele, coitado. (Maria Dannemann)
– Tinha também o BELCHIORQUINHO do rádio, foi até candidato a vereador. (Lucio Gallo Netto)
– Lembro do PULA PULA PIRU, GLU, GLU, GLU! Ele morava na Rua Padre Caldeira. (Vera Sousa Ferreira)
– Ninguém ainda se lembrou do JUQUINHA, aquele que vigiava as moçoilas que, a seu ver, não se comportavam decentemente ao dançarem na Recreativa. (João Lucas Ribeiro Borges)
* 1: Leia “João Pereira da Silva (João Sineiro)”.
* 2: Leia “Vila Zé Albino”.
* Fontes: Oswaldo Amorim e Patos de Minas: Capital do Milho, de Oliveira Mello.
* Fotos: Boards.fireden.net.