BIOGRAFIA DE FEL E FLOR

Postado por e arquivado em ARTES, CLÊNIO CÉSAR PEREIRA, LITERATURA.

Meu tempo de crer nos homens
não merece um nome:
houve fome, desprezo
miséria de sentimento
opressão
e pouco sonho

No engraxate feito de cacos de vidro,
alumínio, jornal velho para as feiras,
nos revólveres de plástico
berrando camon
aos vossos corações gritantes,
no centro da cidade
na fila do matinê
chupando picolé
com inveja dos sorvetes
gordinhos e bem vestidos
que passavam acompanhados pelas negrinhas
lá de perto de casa,
o tempo não era meu
e passava ora lento, ora veloz.

Meu tempo de crer nos homens
foi negro
e minha mãe não tinha estórias
de felicidade para contar
nem cultuava o túmulo cinzento
que escondia da vida de meu pai,
tinha os olhos fundos
e uma volúpia de coragem:
o desterro de ser quieta.
Ela ensinou-me
que minhas mãos poderiam criar um tempo
de confiança entre os homens.

Não adiantou crescer,
aprender a andar de bicicleta, a nadar,
não adiantou entrar para a escola de datilografia,
não levar bomba no colégio,
não adiantou arranjar namorada rica.
A ilusão que o tempo escondeu
desvairou-se nos tanques lavando queijos,
no olhar baixo diante da necessidade
na cumplicidade com falta de razão de qualquer um.

Meu tempo de crer nos homens,
foi amaldiçoado por um Deus,
manipulado pelos inescrupulosos
e não esqueci de afastá-los de mim
e de meu tempo
para construir.
Ainda cedo senti que só sonhar
era vão
era preciso
sonhar dormindo e brigar pela causa do sonho
durante todos os dias.

Quando um uivo ou sussurro
explodia
os que me olhavam não entendiam
e queriam me moldar ao seu mundo.
Não os aceitava e era inquieto.
Não compensava-me ser amistoso
com aqueles que sugavam-me os sonhos da noite
nos dias amordaçados
com gosto de fel.
Chutando latas, jogando vassouras contra as vidraças
investindo contra a armadura d’outros
isso me construía.
Queria rescaldar meu ódio de classe
sofrida
nos peitos, nas bochechas, nos penteados
dos grã-finos.

Meu tempo de pagar favores aos homens,
de beijar-lhes os pés, de sorrir-lhes
é o tempo de procurar os que sofrem
a opressão do desencanto de ser,
de projetar uma construção sóbria
que abrigue a todos,
de carregar tijolos, adobes,
de gritar aos irmãos, esvoaçar as galinhas,
afugentar as cabras, ladrar com os cães.
Meu tempo é uma senha comum,
vulgar, para o que somos.
Meu tempo é detectar todo o peso do martelo,
a certeza do corte da foice,
a construção do tempo
de crer nos homens e lutar ao seu lado.

Agora quero amar a uma bela mulher
partilhar com ela e com os que vierem
meu espírito de guerra,
a certeza, a imparcialidade consciente,
o toque de tambor dos que lutam,
quero agora, mais que nunca,
pois já tenho a razão de emocionar-me,
ser forte na contenda pelo amor.
Tantos estão próximos de mim
e não os indigno por não me acompanharem,
tantos estão mais próximos
e tenho ramos de trigo e flores do campo,
ousadia e ímpeto, embriaguez e surpresa,
raios de sol
para colorir-lhes em abraços e bravos.
Esses trarão ainda mais…
e seremos todos um só
tempo de construir.

Agora
quero estar em paz
e poder pensar
nesse estanque tempo
que não quero deixar ir para longe
sem a certeza da cor de meu sangue.

NOTA: Esse texto obteve o 1.º Lugar no Concurso de Literatura para Bancários (Poesia)/1982.

* Fonte: Publicado na edição n.º 60 de 03 de dezembro de 1982 da revista A Debulha, do arquivo de Eitel Teixeira Dannemann, doação de João Marcos Pacheco. Esse texto foi transcrito da Revista Ponto Literário n.º 3 − novembro de 1982.

* Foto: Sistema de vesícula biliar florida, de Alina Kvaratskhelia, em br.depositphotos.com, meramente ilustrativa.

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